Fanchona

Definitivamente, aquele dia foi, no mínimo, espantoso .

Como sempre, ela acordou no horário, tomou seu café improvisado e mal feito, café de solteirona que acorda sozinha, desceu o elevador até a garagem, pegou o seu carro, impecavelmente polido, e partiu para o banco onde trabalhava como sub - gerente há vinte anos.

Já com seus quarentões, a Bete, mesmo assim, não era de se jogar fora e chamava a atenção por onde passava. Vistosa, com seus cabelos mesclados de louro - castanho, à lá “mulher fatal”, sabe ? Aquela coroa do filme. Enfim, era do tipo Glen Close latinizada, um pouco mais nova.

Sempre de blazer e gravatinha, calça comprida de linho, com bolsos de tampa, abotoados, sapatos finos, fechados, e uma forte colônia de bom gosto. Assim apresentava - se a Bete aos seus clientes e colegas. Na sua opinião, os homens eram uns interesseiros, aproveitadores e pegajosos, nenhum prestava. Concessõezinhas? - Somente aos coroões bem situados economicamente, mas nada de gracejos, abracinhos, pegadinhas ou flertes, isso não! Assim pensava a Bete.

Gostava de uma longa viagem de férias, geralmente para muito distante, e,no serviço, tinha alguma preferência pelas “descompromissadas”, como dizia, sem descartar as demais. Atinada e decidida , usava com freqüência a expressão “que é isso menina!”, quando repreendia uma colega. Já com os do sexo masculino, posicionava-se de forma desafiadora , competitiva , e gostava de demonstrar alguma superioridade nas tarefas, adotando, mesmo que em momentos de particular necessidade, atitude superior, como se estivesse sempre pronta a oferecer a sua compreensão e o seu entendimento.

Decidida e dotada de grande desembaraço, além de competente e qualificada, conseguiu chegar ao cargo que ocupava , alcançando por mérito próprio sua independência econômica. Tinha um bom apartamento em bairro nobre, um bom carro do ano, uma chácara , onde passava alguns finais de semana, e fazia suas viagens de férias, geralmente para o exterior. Possuía, enfim, todo o conforto desejável, sem maiores exageros. Mas a solidão , mesmo que cercada de “amigos”, crescera dentro de si como erva daninha, responsável por todas as suas extravagâncias e pelos seus descontroles. As vezes bebia ou fumava demais, as vezes suas noitadas eram exageradas, seus finais de semana muito agitados ou muito monótonos … Seu desafinar com o mundo oscilava entre empolgações e insatisfações.

Mas aquele dia seria diferente! Num momento de profunda autenticidade, deparava -se com a Cristina, que, como a grande parte das cristinas, tinha olhos claros, cabelos louros e ares de moçoila, apesar dos seus vinte e oito anos. Uma graça de menina pela qual apaixonara-se e dispunha a lançar-se em uma aventura sem restrições. Muito porque, um projeto de casamento entre pessoas do mesmo sexo estava aí, e, como seriam felizes ! Acordar ao lado da Cris, acariciar-lhe os cabelos, beijá-la levemente o rosto, preparar - lhe o café na cama, assistir TV juntas, uma no colo da outra, entre beijos lascivos, irem juntas às compras, ao cinema, às viagens, à ginástica, Ah! Não deixaria a Cris um momento sequer, compensaria todo o tempo perdido na solidão.

Diante de si, na copinha interna, ali sozinhas, dirigia olhares esperançosos àquele encanto, que sempre lhe tratara com carinho. Como pessoa decidida que era, assumiu o risco, de ímpeto, e, com um ar sério, perguntou à Cris : - Escuta, você quer morar comigo? E lavantando-se, em transe, aproximou-se assediosamente até a Cristina e,enlaçando-a fortemente, balbuciou-lhe ao pé do ouvido : - Sabe, eu te amo, sou louca por você e estou disposta a tudo. -Vai sair uma lei nova aí que permitirá a nossa união, o nosso casamento, tenho a certeza de que a farei muito feliz. A Cristina, aterrorizada, tentava se desvencilhar daquele abraço cada vez mais apertado, enquanto a Bete partia rumo aos seus lábios à procura de um beijo louco, apaixonado, fisgado das suas ilusões.

- Nãããããããããããããããããããããããããããão ! Ecoou por toda a agência bancária o grito da Cristina, que saíra em disparada da copinha levando consigo as colegas que, pelo caminho, também a seguiam, correndo em pânico, por pensarem se tratar de algum assalto, um incêndio ou coisa assim . Certo é que foi um alvoroço danado no banco, não ficando ninguém no seu interior, à exceção da Bete que, chocadíssima e de volta à triste realidade, permaneceu imóvel até os esclarecimentos finais.

Em casa, não sabia se dava um tiro na cabeça ou se bebia até embriagar-se. Bebeu até embriagar-se. Não foi trabalhar no dia seguinte e no outro dia pediu transferência da agência, saindo de licença para tratamento de saúde.

Quem a viu, dias depois, disse estar a mesma acompanhada de uma senhora um pouco mais velha, feia, e que as duas trocaram um apaixonado beijo no interior de um carro no estacionamento de um shopping. Sabe como é, todo mundo tem suas reservas !

Nota: Está aí a resposta ao desafio que me fizeram, de escrever um texto não poético, narrativo, envolvendo o terceiro sexo.

Di Amaral
Enviado por Di Amaral em 22/01/2008
Reeditado em 19/04/2013
Código do texto: T827558
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