SOBERBA CASTIGADA

Quase fui flagrado por um amigo intelectual, quando comprava um cd do Roberto Carlos, em uma loja perto de minha casa. Cheguei a pensar que não tinha jeito quando ele me olhou por cima dos óculos com aqueles ares que a princípio julguei que fôssem de fisco e censura.Seu silêncio parecia dizer algo em torno de "até você, meu amigo? Roberto Carlos? Que coisa mais piegas! Estou pasmo!". É claro que ele diria isso, caso dissesse, com um vocabulário bem mais clássico.

Pus o cd de volta na gôndola promocional e entabulei com ele uma conversa bem previsível para o ambiente. Falamos de música, é claro. E a conversa foi ainda mais previsível, por ser entre dois sujeitos metidos a bestas, de meia idade e cheirando a mofo cultural. Coisa típica de velhos militantes da tropicália e das guerrilhas estudantís dos anos sessenta, não exatamente contra a ditadura, mas contra o a favor. Velhos adeptos do não a qualquer tipo de sim, ou do sim a qualquer tipo de não, sempre ao som dos velhos heróis que fizeram lá sua fama, sua cama e seu cacife, e hoje acham que o Brasil está ótimo.

- Estou aqui procurando alguma coisa do Chico.

- É, eu também vim aqui ver se renovo o meu estoque. Parece que saiu uma coleção boa do Chico, algo do Caetano e do Gil - Respondeu solenemente o meu amigo.

Nosso colóquio desfiou um rosário de Chico, Caetano, Gal, Vandré, Bethânia e outros nomes obrigatórios ao "nível", passeando até pelos novos "ícones" da "música cabeça", sempre evitando o Roberto Carlos e outros de sua linha; quase "laia", se dependesse de nossa expressão de conteúdo nobre. Elogiamos o Lenine, enaltecemos Marisa Monte, analisamos Tom Zé, fizemos ressalvas ao jorge Vercilo, e por aí fomos, como se a loja fosse a nossa casa e nós fôssemos donos absolutos do bom gosto musical.

Despedimo-nos depois de mais de uma hora, e resvalei para um canto meio escondido, sem o produto à mão. Cheguei a levantar suspeitas dos atendentes, pois a loja estava deserta. Só eu e meu amigo estávamos lá, além deles que ficaram se perguntando em silêncio, a julgar pelas expressões entediadas, se não tínhamos mais o que fazer.

Quando percebi que o amigo intelectual se retirou, após um acerto com o balconista, dei mais uns minutos de tolerância ao meu anseio e voltei ao corredor onde o deixara, olhando em volta para me certificar de que nenhum outro "fiscal de inteligência melódica" estava a postos. Feito isto ergui a mão à gôndola e tive uma frustração: O cd de Roberto Carlos não mais estava; aquele era o último exemplar, e meu amigo o arrematara tão logo viu que "me descuidei".

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 18/01/2008
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