Sou mais uma mercearia - BVIW
Sempre que eu passava na mercearia do seu Onofre, no bairro onde vivi parte da minha infância, a cena se repetia. Podia ser manhã ou tarde. Ele ficava fora do balcão, coçando a superfície lisinha do couro ex-cabeludo, e conversando com as donas de casa, os meninos, os aposentados. Dava conselhos, perguntava como ia a família de cada um e falava das suas novidades.
Este tipo de cena, que marcou minha memória afetiva, é cada vez mais rara. Quase um camafeu pendurado no pescoço do passado. Nos bairros de classe média e alta as mercearias sumiram primeiro. Agora está chegando a vez dos bairros de baixa renda. Estes antigos pontos de venda e boa conversa entre vizinhos foram engavetados pelas redes de supermercados.
Ouvi uma empreendedora dizer recentemente que em breve todos os pequenos comércios serão engolidos. No lugar de espaços onde antes o seu Onofre fazia as histórias de cada um interagirem com as de outros, apenas relacionamentos comerciais. Gôndolas compridas, variadas, poucos funcionários e ampliação do sistema de autoatendimento.
Nada de saudosismo. Nem tão pouco ser resistente ao progresso iminente. Apenas a certeza de que prefiro lembrar da cabeça lisinha do seu Onofre, talvez mais comunicador do que comerciante, do que ficar ouvindo: insira seu cartão, tem carro no estacionamento, não puxe o papel. Quem tiver uma mercearia no seu passado que guarde bem guardada no seu camafeu de afetos.