Olha o Trem!!!
Amigo leitor e amiga leitora, sejam bem-vindos a minha escrivaninha. Permita-me vos importunar mais uma vez com minhas divagações sobre o livro Dom Casmurro, do nosso Machadão. Espero não vos aborrecer.
Lendo o primeiro capítulo de Dom Casmurro, não sei se você se lembra, mas vemos que Dom está indo da cidade para o bairro Engenho Novo. Sabemos que a cidade é o Rio de Janeiro e sobre o bairro já falei algo em algum texto anterior. O foco que gostaria de dar no momento é no meio de transporte que o protagonista estava usando: o trem! E para facilitar a nossa compreensão, o narrador-personagem nos faz o favor de citar o nome da estação de trem na qual está: é a estação Central, que conhecemos por Central do Brasil, bem, pelo menos do filme você a deve conhecer. Quando me deparei com esse trecho eu pensei comigo mesmo: Como estava o Brasil na questão do transporte ferroviário em comparação com o resto do mundo? Essa pergunta foi o motor para eu escrever as linhas que seguem.
Para iniciar a nossa pesquisa fiz a seguinte pergunta ao grande oráculo da internet, o Google: Qual foi a primeira linha de trem inaugurada no Brasil? E para minha surpresa, a primeira linha de trem inaugurada no Brasil foi em 30 de abril de 1854 e chamava-se Estrada de Ferro Petrópolis, que ligava o Porto Mauá à estação Fragoso, em Magé. Essa foi a terceira estrada de ferro da América do Sul, e,como já citei, a primeira do Brasil. Cobria, na verdade ainda cobre (se bem que na Wikipédia diz que essa estação funcionou até 1888, careço então de maiores informações a respeito), um trecho de 14km e foi inaugurada pelo próprio Imperador Dom Pedro II. A segunda estrada de ferro do Brasil é nordestina e foi no Recife, em 1858. E a terceira foi a atual Central do Brasil, também de 1858. A minha surpresa se refere à data: 1854! “Mas por quê?” O leitor poderá me perguntar. Deixa-me explicar melhor nos parágrafos seguintes, por favor, não me abandone.
De forma resumida, foi um inglês quem criou a primeira ferrovia, ou pelo menos a gênesis do que viria ser uma. Seu nome era Richard Trevithick. Suas primeiras máquinas datam do início do século XIX e tinha aplicação nas minas. Ele fez um modelo de máquina à vapor capaz de transportar pessoas, isso foi no natal de 1801 e batizou a máquina de Puffing Devil. Mas o negócio ficou sério em 1804 quando o mesmo inventor criou uma locomotiva capaz de transportar 25 toneladas de carga. Era um avanço no transporte de produtos, principalmente minerais.
Entre 1829 e 1841 um novo personagem entra na história por meio da aquisição de 100 locomotivas da Inglaterra. De quem estou falando? De ninguém mais e ninguém menos do que os Estados Unidos da América! Com vinte e cinco anos de antecedência em relação ao Brasil, os EUA dão a largada no investimento em ferrovias e vinte e quatro anos antes da primeira ferrovia brasileira ser inaugurada, os EUA já tinham construído e disponibilizado para venda uma locomotiva capaz de transportar 141 pessoas. Enquanto isso o transporte por aqui ainda era basicamente aquático e por precárias estradas de barro e mato sob cavalos ou carruagem com tração animal, também geralmente cavalos.
Durante a primeira guerra mundial os Yanques compraram 1.930 locomotivas e só em 1920, época de apogeu econômico, nos Estados Unidos foram adquiridas 15.000 locomotivas, já no final do século XIX, esse meio de transporte representavam 85% da força motora daquele país.
A título de curiosidade, procurei saber como está o Brasil hoje, ou pelo menos na atualidade, levando em conta os últimos anos. Pois bem, em 2022 tínhamos 3.100 locomotivas (veja que só em 1920 os EUA tinham 15.000) e conta com 30.000 km de ferrovias. É inevitável comparar, então vamos lá: nos EUA a malha ferroviária é de 290.000 km, quase 10 vezes mais. Na Argentina, que é três vezes menor que o Brasil, a malha ferroviária chega a ser maior que a nossa, são 34.000 km. A maior da América Latina, isso atualmente.
As informações e dados garimpados e apresentados a você, amigo(a) leitor(a), serve para mostrar como esteve e está o Brasil no cenário das locomotivas em comparação a outros países. Nitidamente vemos que a opção pelo transporte rodoviário foi uma escolha política e nada recente. Não quero me estender com algo que possa levar o leitor aos bocejos, mas documentos mostram que a não opção por uma malha ferroviária robusta e acessível, que ligasse os quatro cantos do Brasil, capaz de baratear os custos de transportes, com menor impacto ambiental, e uma alternativa para o transporte de passageiros foi um projeto político que remete aos deputados e senadores do tempo do Império.
Vejamos o que pensava Bernardo Pereira de Vasconcelos, enquanto senador, em 1843:
“A Comissão de Fazenda examinou o projeto de resolução enviado pela Câmara dos Senhores Deputados, autorizando o Governo a subscrever pelo valor de duas mil ações, como acionista da companhia organizada por Tomas Cochrane para construir uma estrada de ferro, conforme o decreto de 4 de novembro de 1840 e condições que o acompanham.
A Comissão convencida como está dá não realização da empresa projetada, a qual servirá somente para dificultar qualquer melhoramento das estradas já existentes, que porventura se empreenda, e, atendendo aos apuros do tesouro, é de parecer que não seja aprovada a dita resolução.”
Mas veja bem, nem todos estavam contra as ferrovias. Em 1835, junto ao início do desbravamento das locomotivas, o regente Padre Diogo Antônio Feijó (aquele que o tio Cosme não era muito fã), promulgou uma lei que concedia os direitos para empresas construírem estrada de ferro ligando Minas ao Rio Grande do Sul. Essa informação mostra que o Brasil, sob o período regencial, estava atento à evolução do transporte de massas. Mas, como já sabemos, não eram poucos os entusiastas do transporte por rodovias em detrimento ao transporte por ferrovia.
No artigo “Vista do Transportes e planos de viação no Brasil imperial” encontramos uma das justificativas para as autoridades não terem pressa em se preocupar com transporte, seja de carga ou de pessoa:
“Segundo Ernani Silva Bruno, a atividade cargueira realizada pelos comboios de índios escravizados em São Paulo perdurou até o findar do século XVIII, mas tal tipo de transporte também era amplamente utilizado nas regiões das Minas Gerais e na ligação entre o litoral e o planalto de Curitiba, no Paraná. O autor transcreveu um trecho de uma carta do governador da capitania de São Paulo, de 1776, ao brigadeiro Sá e Faria, onde se lê: “Farei que no Cubatão ou em Santos estejam índios para o transporte de V. S., porém se pela incerteza de sua chegada se distraírem, sirva-se das escravas da fazenda do mesmo Cubatão, para imediatamente que ali chegar, subir sem demora” (apud Bruno, 1962, p. 94).”
Agora, imagine se a elite teria pressa na modernização do transporte no Brasil Imperial? Utilizava-se a mão de obra escravizada e pronto. Inclusive tem um quadro do pinto Jean Baptiste Debret que representa isso. Dois negros carregando um senhor numa rede. O nome da obra é “Regresso de um proprietário” e pintado em 1816.
Voltemos ao ano de 1854, a data de 30 de abril, quando foi inaugurada a primeira ferrovia brasileira, e após todo esse histórico apresentado, você poderá compreender a minha surpresa: o Brasil estava atrasadíssimo em relação ao transporte ferroviário em comparação ao resto do mundo, mas vimos que também não era uma prioridade. Até o Paraguai, pré-guerra, tinha uma malha ferroviária maior do que a nossa! Isso é inacreditável.
Sim, e sobre a Estrada de Ferro Dom Pedro II, que ligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais, inaugurada em 1854, teve seu nome original mudado para Estrada de Ferro Central do Brasil logo após a proclamação da República. Claro, a primeira coisa após um golpe é apagar a memória. Isso é sagrado.
Fontes pesquisadas:
História das Ferrovias no Brasil http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/609#:~:text=A%20hist%C3%B3ria%20das%20ferrovias%20no,com%2014%20km%20de%20extens%C3%A3o.
https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/196265/180956
Puffing Devil https://pt.wikipedia.org/wiki/Puffing_Devil
O SETOR FERROVIÁRIO DE CARGA BRASILEIROhttps://www.antf.org.br/informacoes-gerais/#:~:text=Em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0%20produ%C3%A7%C3%A3o%20ferrovi%C3%A1ria,1%25%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20a%202021.
Regresso de um proprietário: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Retour_d%27_um_proprietaire.jpg