A vida dos outros é puramente uma novela
E era um simples e fatídico dia de Domingo. Estava jogando conversa ao ar com meu amigo numa calçada em Vila Velha; as palavras saíam da boca, passavam aos ouvidos. A calçada era em frente a rodovia, então os carros costumeiramente interrompiam nosso bate papo – que até onde me lembro, não era nada muito interessante. Algo como:
- Viu que saiu tal jogo? - Ele dizia
- Vi sim, bem interessante…
Mas não mais interessante que os acontecimentos que se sucederam. Entre o jogar de palavras levianas ao ar para brigar com o som dos motores dos carros na rodovia, surgia um senhorzinho lá no fundo da nossa visão. Esse senhorzinho estava bem sujo, vestido de maneira simples, uma barba sem trato e já bem branca pela idade, e então se revelara um morador de nossas violentas ruas. O que ocorre é uma cena simples: o senhorzinho cai pela calçada, apenas vejo pela minha visão periférica. Ele começa a tremular de um jeito esquisito, com certeza não era natural. Meu amigo que estava mais de frente acabou vendo tudo aquilo com clareza, e então, sem pensar muito, disparamos ao encontro do senhor caído.
Devo contextualizar que éramos bem novos, portanto sem condições de dar um auxílio sério, mas ainda sim, ali estávamos. O perceber de que aquele senhor claramente não estava bem carregou nossas veias com o sangue da adrenalina que indicava uma situação nada comum. Meu amigo morava mais perto, portanto me pediu para buscar um copo de água para o senhor que estava claramente convulsionando ao chão. Fui rapidamente e voltei noutro passo – no percurso, tentei pedir ajuda para a mãe de meu amigo que chegou quando a coisa toda estava acabada – deixei o copo de água na calçada e me deparei com o senhor já muito debilitado e com a boca espumando. Meu amigo tentava falar com ele, porém o mesmo não estava em estado que permitia dar respostas. O copo de água era inútil ali.
Em pouco tempo, um rapaz de bicicleta dobrou a esquina e percebeu a situação estranha. Pedimos ajuda – afinal, éramos simples moleques ali – e então ele fez o que estava ao alcance; puxou o celular do bolso e fez uma ligação para a ambulância.
Aqui, amigos, é onde tive os choques de realidade que o mundo então me revelara destruindo a inocência que ainda tinha. Na ligação, a atendente exigia a documentação do senhor – que não possuía nenhuma – e dizia que necessitaria de acompanhante. O rapaz informou que era um morador de rua, portanto não tinha familiar algum, e depois de muitas palavras inúteis a fria atendente respondia com um “- Verei o que posso fazer”. Belo sistema público de saúde este que temos, belíssimos profissionais, sempre prontos a ajudar quem quer que seja! Pena que não a quem precisa, pois a ambulância deve ter se perdido no caminho – mesmo que o postinho de saúde mais próximo fosse quase ao lado.
No meio destes acontecimentos, a paisagem me corria, pois era de se estranhar que ninguém mais aparecesse para fornecer ajuda. Meus olhos corriam aos arredores, e nas casas e varandas eu observava os sedentos olhares curiosos, observando o “entretenimento” cruel que a vida oferece. Numa sacada acima eu encontrava um grupo de pessoas olhando com seus copos de cerveja e refrigerante em mãos. Sempre que meu olhar se cruzava aos dos outros, eles pareciam desviar rapidamente – porque sabiam muito bem o que estavam fazendo. E como urubus cercando um moribundo, estavam os moradores ao redor. Ali eu percebia, estamos sozinhos no mundo, pois quando a inocência da juventude é levada embora, ficamos apenas a carcaça útil para sociedade; servimos ao cumprir de nossas rotinas, rodando o dinheiro do país para corruptos que vivem suas vidas boas, e se falhamos, somos simplesmente substituídos por outros – peças do mecanismo dessa máquina que chamamos de “sociedade”.
Situações como acidentes, roubos, assassinatos, servem simplesmente como a quebra da rotina para entreter a então vida repetitiva desses seres de nossa sociedade que então se juntam aos montes para apenas observar. Devo acentuar que não estávamos em bairro nobre, era bem pelo contrário.
Perguntas pairavam em minha mente: “- Mas e se fosse eu que estivesse passando por isso? Também não iriam me ajudar? Iriam observar tudo como se fosse um jogo de futebol no Domingo?” Que o sangue se fazia de Flamengo ao campo, e o adversário era a própria torcida em seus assentos inomináveis, com olhares sedentos.
A quebra da paisagem se deu quando o senhor se levantava de maneira fraca e cambaleante, dizia algumas palavras que eu não entendia e se colocava a caminhar com dificuldade. Estava ralado, braços, joelhos, cabeça; continuava seu caminhar sozinho após enfrentar uma quase morte.
O que me sobrou daquela situação e que relatei ao meu amigo e ao rapaz foi:
- Ele entendeu… Entendeu que a ajuda não viria, entendeu que as pessoas não desceriam ou sairiam de suas casas para ajudá-lo. Entendeu que somos apenas moleques sem capacidade alguma de fazer algo, e que para os adultos aquela cena toda era simples novela. Portanto, se colocou a caminhar.
Foi de fato uma das situações mais marcantes que me lembro, e que me remetem até hoje ao modelo de pessoa da qual nunca quero me tornar. Também fica a simples porém confortavelmente ignorável reflexão: Que de nosso país não fica apenas a problemática nos roubos, no tráfico e na corrupção política. Nossa população também não oferece a mão…
E a ambulância até hoje não chegou ali.
~05 de Julho de 2024