Para a janela do ônibus, as luzes da noite
Tenho um certo costume que ponho em prática em toda viagem que faço do qual já percebi que é algo um tanto universal. Costume simples, mas tão significativo, algo um tanto magistral. Bem corriqueiro, todos o praticam; talvez poético pois nos coloca ao pensar, ao construir em nossas próprias mentes. Num simples momento, nos tornamos pintores com um quadro passageiro ao correr de nossos olhos perante paisagens que fogem em segundos. É como se estivéssemos olhando o rotacionar do mundo de maneira acelerada. É como se, em pouca complexidade, saíssemos do nosso plano de realidade e atingíssemos a função de espectador; simplesmente observamos.
Mas uma vez que nos colocamos neste estado, somos passivos para com as imagens observadas, não estamos ali, estamos na profundidade de nossas mentes com as lembranças tocando como filme no cinema a frente de nosso cérebro. Juntamente das lembranças paira a pergunta “- E se?”, oriunda de nossos arrependimentos tão corriqueiros. Do que você se arrepende, amigo(a)? Pois que eu me arrependo de muitas coisas quando me pego nestes momentos. Nunca percebo tantos arrependimentos, só me acomete a lembrança nestes específicos casos.
E se da paisagem fartam-se nossos olhos, nos ouvidos estacionam como passageiros os nossos fones. Aos fones, rola aquela música que sabemos a consequência; o demasiado pensar no passado. Mas se um psicólogo ousar me dizer “- Não se deve fazer isso!”, eu digo meu profundo e sincero “- Não ligo!”. O ser humano precisa sofrer para crescer, olhar para os arrependimentos para aprender das próximas vezes. Se não sofremos, que valor existe na felicidade? Aliás, o que é felicidade sem o sofrimento? Um estado de platô, vazio e atônito?
Dos arrependimentos que nos cobram, formam-se aquelas telas das lembranças de todas as idades – impressiona-me o grande filme que me toma. O arrependimento trás os amores não correspondidos ou deixados para trás; Oh sentimento solene que machuca o ser humano, mas também o torna mais feliz que todas as riquezas. Não é atoa que o segundo maior ensinamento de Jesus foi o “ame a teu próximo como a ti mesmo”. Inclusive, engana-te se pensa que isso quer dizer apenas empatia, pois também diz respeito à fidelidade de nossas relações; Assim como você não trairia a si mesmo, também não deveria trair os outros. Fidelidade está em falta atualmente, e não falo apenas de relações amorosas. Fidelidade até para consigo.
Não só de amor vive o humano, pois também lembra das amizades passadas. E como doi perceber que aquilo foi deixado para trás – acontece como um estalar de dedos. Pensamos nas brincadeiras, nas festas, nas risadas, na simplicidade; e como era simples…
A falta de consequências que movia a inocência da tenra idade hoje move a grande estupidez dos adultos que se matam em coisas fúteis. Se quiser saber o quanto a vida é simples, examine as brigas infantis que se resolvem em segundos, enquanto uma discussão adulta afasta durante uma vida inteira. Penso que isso ocorre pelo fato de crianças serem movidas por sentimentos e não por egocentrismo e ignorância.
Se me permite, aqui quero desenhar a formosa paisagem que me vem em mente como uma bela pintura no museu das minhas lembranças: Um assento aconchegante. Era noite, provável que entre Dezembro e Janeiro, época de férias em que eu iria viajar para a terrinha de minha avó. No meio da paz que trás a falta de luz da noite, também me vem aquela preocupação com o mal que passo nas viagens. Me encontrava em uma cidade qualquer do Espírito Santo – pois nunca fui bom em me localizar. Comigo, estava o assento vazio ao lado, o corredor e mais dois assentos com dois desconhecidos dormindo. O silêncio só era quebrado pelas batidas de uma música no meu fone e o motor da feroz máquina que nos carregava por horas de um lado ao outro. Os meus olhos se encontravam com a transparência do vidro que me permitia observar o passar das ruas vazias. Então era uma madrugada…
E na madrugada surgem nossos fascínios. Tão perigosa pelas ruas de nosso lindo Brasil, mas me encontrava protegido pela máquina metálica. As poucas almas que aparecem são aqueles já sem rumo na vida, talvez entorpecidos pelas substâncias que estancam seus sofrimentos mas tomam suas vidas. Mais do que almas vagantes, o que me chamara atenção eram as luzes da cidade na madrugada; a madrugada sempre me trás aquele sentimento misterioso. As luzes me comunicavam sobre as vidas da cidade como as letras num livro. Luzes acesas em algumas casas, em alguns quartos de apartamentos, nas fachadas das lojas. Não sei o que aquilo quer dizer, sequer me forço a interpretar, pois o que ocupa minha mente são as lembranças que surgem no ritmo da batida da velha música ao fone. Penso neles, penso nela, nem sei onde estão…
Penso também em mudar, de lugar, de aparência, talvez um pouco da personalidade. Penso no que já vivi, no que já sofri, e somo com o que ainda imagino viver no futuro nebuloso – pois ninguém, senão Deus, sabe de nossos futuros. Ao final de tudo, constato como Sócrates: Só sei que nada sei. Será que Sócrates estava de fone num ônibus grego? Pois se estivesse, chegaria ao mesmo empenho que tenho com esta crônica: Uma carta de amor para a janela do ônibus e as luzes da noite.
~28 de Junho de 2024