O poeta que se deu ao trabalho de parar o tempo

A vida é um misto, boa e ruim, tipo o queijo e o pão – difere as opiniões, mas entre queijo e pão, prefiro o queijo – horrível e bela. Se pararmos por um momento, podemos constatar que isto é um tanto poético. Já parou para analisar o seu arredor? Não estou falando de uma simples olhada, mas realmente uma parada abrupta enquanto faz algo corriqueiro. Uma parada tão abrupta que soa como um acidente de carro, vêm de repente, assusta, espanta, te deixa sem ar, mas esse conjunto de coisas te faz refletir. Dessa reflexão surgem os grandes agradecimentos futuros.

Eu parei abruptamente enquanto era atendido por uma entregadora de lanches, e ali, naquele simples momento, eu pude sentir. Senti as coisas ao meu redor, senti a existência dela, o frio que circulava por ali, os pássaros em profundo sono empoleirados nos galhos das árvores, a velhice dos muros das casas, os desgastes da rua, as rachaduras na calçada. Estava tudo ali, e isso, meu caro leitor, me fez querer escrever; a você, talvez cause outros gatilhos de expressão. Essa simplicidade da vida, do existir, é algo que pouco percebemos. Parar para pensar e perceber que sequer entendemos o porquê de estarmos aqui, ou até o que somos, é isso que o parar abrupto nos causa. E eu parei, abruptamente parei naquela noite.

Aquela alma ao meu lado, uma simples entregadora, proletária, realizando seu dever na noite fria, esperando meus “comandos” como um computador, soou poético. Aquilo me pegou profundamente. Eu olhei naqueles olhos – magníficos olhos – e eram de um castanho profundo, me lembrava as cascas das árvores mais jovens de uma floresta, daquelas que você sabe que são lindas mesmo que não repare tanto; mas ao mesmo tempo, aquela simples entregadora me soava solitária. Aquele rosto, era comum, mas possuía uma beleza daquelas naturais. Ela não usava maquiagem, é do tipo de mulher que me apaixonaria numa noite como aquela, mas não o fiz, eu estava parado. Ela possuía as marcas que a vida lhe deu, todas estampadas em seu rosto. Era jovem, algumas espinhas que lhe davam um ar menos maduro, portanto mais inocente. Algumas olheiras, talvez fosse esforçada de alguma forma, possuiria ela desejos futuros como todos nós? É claro que sim. O cabelo encaracolado, preto como a umbral do céu que nos acompanhava naquela noite. Estava amarrado numa espécie de “rabo-de-cavalo” sem muito requinte, ela não estava tão preocupada em passar boa impressão, mas isso soou bem aos meus olhos, eu admirei. Foram poucos os momentos em que olhei aquela garota, partindo para mocidade, mas o parar do tempo me deu o benefício de admirá-la, portanto o fiz.

Não quis saber de pensar em coisas carnais, apenas observava-a como quem olha um quadro, e assim fiz com todo o resto. As mão que me entregavam o celular para completar o pagamento, eram pequenas, unhas não tão cuidadas, possível que ela tivesse mais preocupações do que o cuidado com a aparência, e isso é admirável, faz o ser humano soar mais real, natural. A pequenez daquela mão denunciava a delicadeza que ela possuía, embora a totalidade da aparência não dissesse o mesmo. As roupas que agasalhavam ela no frio, protegendo desse vento que carrega agulhas para penetrar a pele dos coitados e desavisados, esse mesmo vento que irá afligir os solitários nas ruas desta madrugada, irá de maneira posterior sepultar os rejeitados, mas ali, naquele momento exato, estava sendo rejeitado por aquela simples garota, despretensiosa, trabalhadora.

A bela noite que nos acompanhava era bem escura, muda, não se ouvia corujas, conversas, risadas, nada. O céu ostentava suas estrelas como diamantes que estavam sendo ofuscados pela penumbra das nuvens, e tudo me pareceu poético. A Lua nos olhava de tão longe, refletindo o brilho de seu marido Sol, esta é a aliança que a dona Lua sempre apresentava. Menos distante de nós, apresentavam-se os fios de eletricidade, percorrendo a cidade como as teias de aranha percorrem nossas casas, ligando-se aos postes de luz, rudimentares mas que nos forneciam fótons suficientes para clarear nossos caminhos. A luz dos postes refletidas no asfalto me recitavam formas das mais variadas, e a timidez das plantas oprimidas pelo concreto do chão exibia a marginalidade que ocorria entre nós para com a natureza. Nós oprimimos tudo, inclusive a nós mesmos.

A melancolia das áreas que não eram abençoadas pelas luzes ficavam evidentes. Dona Lua é bondosa, pois aos oprimidos oferece a luz de seu matrimônio com o Sol. As folhas das árvores se deleitavam entre um banho de luar que me permitia enxergar cada uma delas, juntamente do vento que às provocava movimentos. As casas explanavam suas luzes pelas janelas como as galerias explanam seus quadros, e em cada casa, uma família, e em cada família, uma história. Eu até pararia para ler a história de cada um, mas sou recluso. Não carrego o ofício de bom falador, talvez de bom escritor já me sirva – e nem disso tenho certeza.

Minha certeza era o sono, o sono que banhava a cidade como o mar banha as areias de uma praia ao luar. O sono que servia aos trabalhadores cansados, mas que era rejeitado pelos rebeldes e aventureiros, pelos malandros e pelos amantes. Quantos amantes ao nosso redor estão vagando pela noite desta cidade, rejeitando as súplicas do sono, deleitando-se nos prazeres da simplicidade conjugal.

Por onde quer que eu olhava, a poesia me chamava. Ela era como um fantasma de uma dama que faleceu antes do matrimônio. Queria completar seu casamento, e por isso me implorava os versos que preencheriam os votos da noite parada em minha cabeça. Poesia, escrita, a prosa, os contos, todas ferramentas de comunicação que surgem do cerne de nossa alma, e surgia ali naquela noite.

Eu tenho uma das mil e uma noites em uma versão urbana e moderna para descrever em palavras,

e tenho a oportunidade de recitar poemas sobre cada aspecto desta mesma.

Eu tenho a paisagem,

Eu tenho a galáxia,

Eu tenho as estrelas que tanto foram admiradas por nós durante nossa passagem na Terra,

Eu tenho as plantas que crescem a mercê de buracos no asfalto

e posso fazer como Drummond de Andrade,

Eu tenho a musa, como Mona Lisa que Da Vinci teve o prazer de pintar,

Eu tenho as aves que aqui não gorjeiam pois o sono não as permite o gorjear.

Eu tenho tudo.

Eu parei o instante,

O segundo,

A rua e as calçadas,

O Brasil e o mundo.

- Escrito em alguma noite dessas.