Sem caridade, eu nada seria
Uma das fases mais marcantes da minha vida foi, sem dúvidas, a faculdade. Para minha ventura, cursei duas. A da primeira, especialmente, foi a que mais exigiu de mim paciência, disciplina, amor e maturidade. Tivesse ou não tais virtudes, eu precisaria, de alguma forma, adquiri-las.
Até então, eu só tinha trabalhado como babá e cuidava do meu pai. Consegui um emprego, meio período, numa escola. Aos finais de semana, realizava trabalho voluntário.
Foram anos de muito conhecimento. As vivências dessa época comportam, facilmente, um livro. Uma de minhas amigas, certa feita, disse-me uma frase que até hoje ecoa pelos meus ouvidos: "a Luciana acorda às seis, dorme depois da meia-noite, trabalha de segunda a segunda e vive sorrindo. Como pode?".
Para meu espanto e embaraço, já que fico acanhada com elogios, não pude expressar nada mais que um tímido sorriso. Esses e outros comentários e vivências, consolidaram nossa amizade que, graças a Deus, perdura até hoje.
Fiquei responsável por diversas oficinas. Uma delas era ensinar inglês. Um senhorzinho, que estava sempre presente nas adjacências, ao ouvir que abrira tal ofício, pediu para participar.
Recebi-o honrosamente, sabendo que teríamos muitas permutas. Não me surpreendeu seu desempenho nas aulas. Assíduo e comprometido que era, mesmo com a deficiência visual, ele superou suas dificuldades e aprendeu muitas coisas; eu, então, bem mais do que ele.
Ouvíamos os clássicos internacionais. Ele era apaixonado por Elvis Presley. Por ter crescido num ambiente musical, eu conseguia dividir opiniões e conversas sobre as "músicas antigas". Numa aula, levei "Feelings", do Morris Arriberti, para afirmar o conteúdo abordado.
Não disse o nome da música, apenas coloquei e deixei tocar. Ele ligou seu gravador, que levava a toda aula. Terminada a canção, vi que estava emocionado; ele me disse: "essa música é linda demais, Lu. Obrigado por trazê-la".
Ele era uma das pessoas mais sensíveis e generosas que conheci. Certa ocasião, ministrou-nos uma fantástica aula de teatro, a qual me recordo até hoje.
Ficou como meu aluno até o final da faculdade. Apesar de não ter expressado minha saudade com as lágrimas, o aperto no coração foi inevitável: eu sabia que a nossa convivência não seria mais frequente.
Como eu dolorosamente imaginava, nunca mais o vi. Depois dessa época, fiquei um período fora. Soube, há poucos anos, através de terceiros, que ele adoeceu e partiu. Lamentei por não tê-lo mais visto, nem mesmo ter tido a oportunidade de me despedir.
Dentre as ricas e doces lembranças daquela época, o testemunho de vida daquele homem me tocou. Diferente de Morris, eu precisava, sim, ter encontrado aquele senhor, pois ele me ensinou sobre fé: Deus não abandona as obras de Suas mãos; esperança: sonhos não envelhecem; humanidade: nada é pequeno se feito com amor e caridade: sem a benevolência, eu nada seria. Ele não está mais entre nós, no entanto, seu legado permanece mais vivo do que nunca.