CONSIDERAÇÕES SOBRE A LINHA DO TEMPO

 

É preciso celebrar a vida,

ainda que no momento da morte

 

     Nos últimos tempos, tenho resistido bravamente à tentação de exercer a minha vocação (estranha vocação, aliás) para obituarista. Até porque, quanto mais tempo vivo, mais compreendo a importância de celebrar a vida, não a morte. Porém, como vejo morrer cada vez mais pessoas que marcaram a minha trajetória, outro efeito da passagem do tempo, corro mesmo o risco de virar aquele cara que sempre fala: "sabe quem morreu?"

   E há, claro, um comportamento inerente à minha profissão. Na imprensa, é fato, preparamos aquelas páginas especiais ou deixamos um texto de gaveta sobre figuras públicas que já estão idosas ou doentes, ou que vivem perigosamente, para "adiantar" o trabalho na hora final do personagem. Pretensão pura, já que muitas vezes o jornalista morre antes daqueles sobre quem pretendia escrever. Imagine, por exemplos, quantos obituaristas morreram antes da rainha Elizabeth II ou do arquiteto Oscar Niemeyer?

   Lembro que a repórter a quem eu, editor em um jornal diário, cobrava que deixasse pronta uma matéria sobre o já doente Nelson Mandela acabou sendo demitida em um corte de custos de jornal, dias antes do grande líder sul-africano falecer. Ironia da vida. E eu tive que reunir em uma tarde as informações mais relevantes sobre o Madiba. Na morte de Leonard Nimoy, o eterno senhor Spock, revelei meu lado fã de Star Trek para escrever algo informativo, porém emocional, sobre o ator que tanto me influenciou e seu legado na cultura pop.

   Porém, inevitável, tenho uma sensação de injustiça quando lamento publicamente a morte de uma pessoa famosa, ainda que tenha me influenciado realmente , e percebo mais repercussão do que quando lamento a morte de pessoas comuns, heróis e heroínas do dia a dia, que me deram amizade, ensinamentos, empatia, oportunidades, respeito e tudo o mais de bom que as pessoas comuns fazem porque são boas. A injustiça pode estar no olhar das pessoas, que é sempre atraído para o que tem fama, o que é espetacular, trágico ou inusitado.

   Em dado momento, uns 20 anos atrás, decidi que contar histórias de vida, através de singelos perfis biográficos, era muito mais correto do que contar essas mesmas histórias a partir daquele ponto inevitável - a morte - como fazem os obituaristas. Ainda assim, vez por outra me sinto obrigado a registrar um falecimento, falar sobre a pessoa e lamentar em meio a toda a aldeia, não apenas em meu espírito circunspecto.

   De fato, há algo que nos escapa. Imagine poder dizer, no momento do nascimento de alguém, tudo o que de mais extraordinário aquela pessoa faria, ou fará, assim como as pequenas coisas, os erros, os tropeços. Dar spoiler de tudo, um oráculo desmancha- prazeres. Um " nascimentarista", ou coisa que o valha, algo que profetas, astrólogos e até os geneticistas falham fragorosamente em fazer, dada a complexidade de cada indivíduo.

   Com o passar dos anos, a gente compreende que nem mesmo a morte encerra uma história. Legado, obra, citações, memórias que criamos nos outros, descendentes, amizades, tudo isso amplia a linha do tempo que, na teoria, já estava encerrada. Chego a crer que não há fim, nem início - seríamos apenas hipotéticos segmentos de reta, esquecidos que somos de que a reta é infinita, até por ser uma abstração teórica. A distância entre dois pontos definiria parte do que somos, não o todo.

   Mas, definitivamente, alegorias matemáticas não são o meu forte.