O SER PENSANTE

Quase atropelou a senhora de idade que atravessava a faixa de pedestres... - Será que essa velha não percebe que não dá tempo de atravessar quando o sinal já está amarelo??? – ela bradou. Acelerou mais ainda o carro. Queria chegar logo, terminar logo o que tinha a fazer e ir embora mais depressa ainda. A empresa a fizera entrar em um programa de adoção de crianças órfãs no fim de semana. – Malditas pestes. Não vou ter tempo de fazer as unhas. –

À frente viu uma poça de água grudada a um ponto de ônibus onde algumas pessoas esperavam a quase uma hora o ônibus pro outro lado da cidade. A faixa da esquerda estava parada... não dava mais pra mudar... talvez molhasse umas cinco pessoas, e daí? Ela não olharia para trás. Acelerou. Jogou tanta água que o jornal de esportes do velho aposentado se partiu em dois.

Chegou ao Zoológico onde as crianças esperavam seus pais-por-um-dia. Parou na vaga para deficientes. Nunca multavam mesmo... quem iria esperar para ver se ela estava de muletas? Comprou dois pães de queijo. Comeu um enquanto caminhava. Descobriu que comprar dois tinha sido exagero. Já estava satisfeita...

Passou por um mendigo que lhe pediu por algum trocado. – Desde ontem não como senhora. Por favor? –

- Senhora??? Vá trabalhar vagabundo! – Rosnava ela enquanto se afastava.

- Senhora? Senhora? Tenho apenas 35! Que se dane ele! –

Passando pelas latas de lixo foi logo jogando seu pão de queijo.

– Essas latas merecem mais que o indigente... –

Não observou apenas o fato de que a lata que ela jogava trazia os dizeres: plástico. Mas não acertou... o pão de queijo bateu na beirada e caiu no chão. Ela viu. Mas deixou. Estava com pressa. - E se não tiver lixo como o pessoal da limpeza sobrevive? –

Encontrou o resto do grupo. Começaram o passeio. Viram o Hipopótamo, a Girafa. A menina de mão dada com ela mal conseguia ver os animais. Ela era a primeira a chegar e a sair. E nem olhava no rosto da pequena garota. Tirou um cigarro e começou a fumar mesmo diante dos olhares acusadores dos outros pais do grupo.

Chegaram aos chipanzés. Olhou com desgosto enquanto as crianças se animavam em frente aos animais. Seu cigarro chegou ao final. Quase fumou o filtro. Deu um último trago profundo e arremessou a bituca para dentro da jaula. – O pessoal da limpeza agradece. – pensou.

Foi então que um dos chipanzés brincalhões que pulava de um lado para o outro enfiou sua mão num monte grande monte de merdas logo abaixo dele e arremessou em direção às pessoas na grade. E acertou em cheio na mulher! No rosto, no cabelo, na blusa nova... tal foi a precisão que as crianças começaram a rir e bater palmas enquanto a resmungona mulher chorava e berrava: - MALDITOS ANIMAIS IMUNDOS! BURROS! SUJOS, ARRRRGHH... –

O chipanzé apenas esboçou um cínico sorriso, deixando no ar a dúvida de quem realmente era o ser pensante.

(07/01/08)

Josadarck
Enviado por Josadarck em 07/01/2008
Reeditado em 30/09/2008
Código do texto: T806391
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