AGORA NA CASA DO TIO JOÃO.
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É manha de domingo, não sei ao certo o dia do mês, pois sou criança e criança não liga muito para essa coisa de dia certo, nem tem muitos compromissos a cumprir no fim de semana, quer apenas brincar e assistir tv sem se preocupar com nada. Talvez, logo mais à tarde eu fique um pouco triste, a tristeza na tarde de domingo eu já percebi que existe, então talvez a tarde eu vá me preocupar de ter que ir à escola amanhã, assim como os adultos se preocupam que terão que trabalhar na segunda. Mas agora não penso em nada.
Estou aqui em frente à nossa tv. Philips em preto e branco 17 polegadas assistindo ao desenho do pica pau, daqui há pouco vem o Silvio animando o domingo no parque com jogos e brincadeiras.
A pequena Ana brinca no chão de taco a um canto da sala. Estamos no começo da década de 80 e ela é bem pequena ainda.
A mamãe está lá na cozinha começando a cozinhar o franguinho do domingo. Aqui é sagrado o frango de caldo com arroz. E o tempero dela é muito bom. Antes de cozinhar o frango ela retira algumas peles e as frita, deixando-as bem torradinhas. Então nos serve. Um aperitivo enquanto esperamos a hora da refeição. Ah como é bom!
O papai está chegando da missa agora. Assim como a mamãe sempre vai à missa das três no sábado, o papai vai à das nove no domingo. Isso é sagrado. Está com uma aparência alegre, pois hoje é dia de sua folga e fica todo animado.
— Que tal nós í na casa do João hoje? — Feliz ele faz o convite.
E essa frase é para mim motivo de grande animação. Vai ser mais uma tarde daquelas de muita farra, música e brincadeira.
Estamos almoçando agora. Com o prato na mão sempre em frente à tv. saboreio meu franguinho. Mordo aquela coxa suculenta. Ai que coisa mais boa!
E nesse momento estamos saindo de casa, passos lentos pelas ruas de pedra, carregando esperanças e risos para acompanhar o nosso agradável passeio de domingo.
E vamos pelas ruas do nosso pequeno burgo, a bucólica, pacata e doce Pitangui dos anos 80, Também chamada de velha Serrana, ou Rio das crianças, cidade “pititica”, pérola das alterosas, incrustada entre as serras no oeste das Minas Gerais.
A tarde clara de céu azul, sem nuvens corrobora nossa alegria. Papai e mamãe lado a lado, papai coloca a mão sobre os ombros delas como se fossem dois namoradinhos, acho isso bonito, tão bonito! Se eu fosse um pouco maior chamaria de romantismo, mas por enquanto não. A harmonia entre os dois me dá certa segurança na vida.
Ana caminha devagar trocando os passinhos lentos com suas pequenas perninhas. É um poço de graciosidade com seus modos delicados, pele muito clara e cabelos amarelos de paina.
Descemos pela Rua Major Bahia, Passamos em frente ao famoso bar da fabrica onde há pouco movimento hoje e logo á esquerda avistamos as imponentes instalações da Cia de Tecidos Santanense onde papai trabalha. Hoje é domingo os teares estão parados, tudo descansa. Mas se passar por aqui amanhã nesse mesmo horário vamos ouvir o apito de dez para as duas. O silvo agudo que todo dia rasga o espaço bradando seus poderes sobre a cidade. Anuncia a mudança no turno de trabalho. Entra uma turma e sai outra. Esse apito é o relógio da cidade, através dele muitas pessoas marcam o fim ou inicio de suas atividades é referencia para muita coisa por aqui. Passamos a portaria, e vamos descendo... passamos em frente ao açougue do Zinho, o bar do Chico de Souza e seguimos rumo ao centro. Mais adianta vemos a grande torre de barro, a chaminé da fabrica onde na labuta da semana sai uma fumacinha branca, sinal de que os teares estão trabalhando a todo vapor. Essa fabrica é tudo para Pitangui, acho que será eterna, nunca vai fechar. Será? Não consigo imaginar outro prédio aqui neste lugar. Quem sabe um dia né, pois tudo pode mudar. Quem sabe até vão existir prédios de residência por aqui? Penso isso embora não seja um pensamento de criança, mas tem horas que pareço gente grande.
Passamos pelo centro bem ao lado do bar do João Cezar. Nossa! Aqui tem muita gente, estão jogando sinuca e os pinguços estão bebendo, bebendo...
Subimos o morro do lavrado, passamos ao lado do vestiário do PEC e tem muito movimento. Hoje vai ter jogo, aposto que o primo Charles está por ali.
Passamos em frente à garagem da Santa Maria, vejo alguns ônibus estacionados e dá uma vontade tremenda de viajar. Quem sabe ir para BH visitar os tios por lá. Ou à casa da Tia Dica em Divinópolis...
Agora estamos chegando, já passando em frente ao posto de saúde, lugar de ir no doutor, de coisas de dor, lugar muito ruim onde nos dão picadas dolorosas, lembrança ruim numa tarde tão alegre.
Enfim chegamos.
Tio João todo alegre e sempre com aquele sorriso de satisfação nos recebe à porta, apertamos-lhe a mão, pedimos a benção. Ele lasca logo uma das suas piadinhas. Papai conversa um pouco com ele à porta e por fim entramos.
Cumprimentamos também a Tia Alaíde e os primos.
Conversamos um pouco, sentados ao sofá, ficamos vendo televisão. Tio João conta um pouco sobre os últimos acontecimentos daquela casa e sobre as coisas da fábrica de tecidos. Papo de operário têxtil é assim, a fábrica sempre participa da conversa.
Lá da cozinha ouço o papo alegre da Tia Alaíde com mamãe. Está rolando uma receita de bolo ou de algo gostoso, espero aproveitar-me disto. E nesta conversa descubro que Tio João acorda de madrugada para fazer mexidão. Olha só como ele é. Não perde tempo mesmo. Penso sem nada dizer.
A conversa prossegue de lá e de cá,
Fico ali concentrado nas falas, mas aquilo não dura muito. Já estou no terreiro correndo e brincando com os primos Rildo, Cleider e Rinaldo. O Alexandre que todos chamam de rapa do tacho, e eu não consigo entender o nome esquisito desse menino, ainda é muito novo mas já arrisca a nos acompanhar em nossas brincadeiras. O loirinho todo espoleta corre bastante, mas cai toda hora o coitado. Mas se chutar uma bola em sua direção ele pega com certeza. Acho que vai ser um grande goleiro.
Charles e Jaqueline, se entendi bem, estão viajando.
E rola bola... e rolamos na poeira e corremos por todos os cantos. Tem esconde esconde lá naquele barracão cheio de camas, dormitório mais bem frequentado que muitas pensões por aí. Sempre me surpreendo e me assusto porque sempre tem uma figura diferente por lá. Seu Pedro está lá bem quieto no seu canto e não devemos incomodá-lo.
Tio Ildefonso a quem nós chamamos de Tidefonso está chegando agora. Ele a Maria Jose sua esposa, o loiríssimo Roney e o ainda pequeníssimo Daniel.
Olha lá, já estão reunidos no terreiro, debaixo daquela árvore que eu não sei como se chama. Tidefonso trouxe um violão e começam a cantoria. Tem uma garrafa branca cristalina e dentro dela um líquido também cristalino. Eles dizem que é água que passarinho não bebe, mas a nós crianças, também não nos é permitido beber daquela água.
Tia Alaíde já trouxe um prato de carne cozida. E eles agora cantam enquanto tidefonso toca o violão, contam piadas, algumas que eu não entendo, e comem a carne.
Ah conheço aquela música. E já gosto apesar de ser menino. É a volta do Boêmio do Nelson Gonçalves. Meu pai vive falando desse cantor. Olha lá como ele estica o pescoço e deixa aparecer a veia enquanto canta. Tio João até deixa cair uma lágrima. Deve ser saudade dos tempos em que eles, rapazes e viviam seus amores nas praças e ruas da cidade.
Eu já sei tudo o que eles cantam e vão cantar. Já conheço aquelas músicas.
A música da professorinha até eu tenho saudade do que já não vivi, ou melhor, do que estou vivendo. E trocam o Miraí por Pitangui.
E para alegrar um pouco o tio João agora tem uma andorinha nos lábios, não, não estou falando dos fartos bigodes, mas sim da canção. A andorinha preta lhe fugiu da gaiola, e a andorinha voa por aquele quintal por todo lado. Voa e sobrevoa sobre nossas cabeças e nossos ouvidos. E vai voar quem sabe até o fim das nossas vidas.
Agora lá está o vento soprando no telhado e balançando as folhas do coqueiro.
E nas cabeças saudosistas dos velhos todos dançam nos bailes de outrora, as valsas bem rodadas de branca e de aurora, e seguem em serenatas nas noites de luas, e são agora os jovens namorados aos pares nas ruas.
E a cantoria vai pela tarde à fora. Carregadas de saudades e dos ares de outros tempos.
Até me imagino depois dos cinquenta anos numa tarde de domingo como esta, ouvindo essas canções num aparelho qualquer e querendo voltar a esse dia de hoje aqui na casa do tio João.
Agora dou uma pequena trégua na brincadeira e passo por lá. Estou pegando um pedaço de carne, sem nada para acompanhar, pois aquela água nos é proibida e guaraná é artigo de luxo, coisa de festa de rico. Mas não importa, pego o pedaço de carne, mordo, sinto o sabor, deliciosa, enxugo os dedos engordurados no shortinho. E volto a correr pelo terreiro.
O repertório é bem variado. Como é que esse povo consegue lembrar-se de tanta música!
Negue o seu amor e seu carinho...
Agora ouço a historia do ouça. Meu pai contando sua história de amor. Sem essa história eu não estaria aqui.
— Eu era noivo da Ritinha, então nós brigamos. Aí eu chamei o Mundim Curé que era bom tocador de violão e fomos fazer uma serenata para ela. Eu cantei a música:
“Ouça, vá viver a sua vida com outro bem.
Hoje eu já cansei de pra você não ser ninguém
Se o passado não foi o bastante pra te convencer
“Que o futuro seria bem grande só eu e você...”
–Depois dessa ela não resistiu e então voltamos o namoro.
Estou de novo roubando um pedaço de carne e aproveito para ouvir um pouco das conversas dos adultos. Tio João diz que só toma um dedo de pinga de cada vez e então mostra o dedo na posição vertical. Tidefonso conta histórias das suas andanças pelo mundo, era vendedor viajante, ia a muitos lugares e tem muitos causos para contar . Narra em sua voz mansa e tranquila uma delas.
Observo que sempre que me aproximo deles algumas palavras são suprimidas da conversa. Por que será?
E ao final da história vem a melhor parte, a risada do meu pai. Gargalhada mais gostosa do mundo. Ele até se dobra para traz, seu corpo se move enquanto abre bem a boca, posso ver até a sinetinha da sua garganta. E aquele som de alegria em altos decibéis, misturado aos sons dos timbres das vozes de cada um (que nunca vou esquecer) e das demais risadas ecoa por todos os cantos, é uma fumaça que vai se entranhando pelos contornos do quintal e da casa e sobe aos ares como a mais perfeita oração. Felicidade pura e declarada. Tal qual uma brisa suave vai varrendo todos os cantinhos e contagiando a todos. Expressão máxima da alegria e da satisfação. Até mareja os olhos de tanto rir, mas mais que lágrimas vejo naqueles olhos castanhos a extrema satisfação que agora reside em sua alma por estar ali com os irmãos naquela memorável tarde de domingo.
E a bola rola mais. E o dia avança a passos rápidos para o fim.
Agora papai que ria está chorando. Tidenfo fala: — João você tinha que fazer o Taíde chorar?— Tio João responde: — Isso não é nada difícil! Vamos fazer de novo? Mas logo passam para outra música e choro, riso e saudade vão se alternando e se misturando tal qual as notas de uma orquestra muito afinada. Efeito daquela água que nos é proibida.
A tardinha vai chegando. O sol fraco doura de um amarelo fosco o chão do terreiro e as folhas das árvores. Agora no lusco fusco do entardecer sinto aquela tristeza. É, menino também sente. Amanhã tem escola, tem muita vida e luta me esperando.
Ouço uma voz mais aguda na cantoria é mamãe, ela canta
Adeus, adeus Pitangui, terra do meu coração...
E depois para combinar com o manto crepuscular entoa em tom de melancolia:
Cai a tarde tristonha e serena. Em macio e suave langor, despertando no meu coração as saudades do primeiro amor. Sinos que tangem com mágoas doridas, despertando sonhos da aurora da vida. Dai-me ao coração paz e harmonia nas preces da Ave Maria.
O sol está se escondendo agora colorindo o horizonte num tom de vermelho e amarelo. São rajadas de tristeza e beleza. Contradição em perfeita harmonia. Um belo quadro pintado pelo maior de todos os pintores. Começa a tocar a Ave Maria nos alto falantes da matriz. Agora que papai chora mesmo.
Um manto escuro vai cobrindo a tarde chega muito devagar, apagando os últimos resquícios de claridade.
Com o fim do líquido cristalino da garrafa e a escuridão o agito no terreiro acaba.
Estamos agora no banho. É, mamãe decidiu que eu tomaria banho aqui, porque vamos chegar tarde à casa e assim já fico pronto para dormir.
Estamos jantando, tem uma comidinha sim, porque aquela carninha foi pouca. Na grande tv Philips da sala tem os trapalhões, depois alguém troca para a tupi e Silvio Santos apresenta o Ronnie von e ele canta a música A praça. Não sei por que, mas essa cena está marcada para sempre em minha cabeça.
Hora de ir embora. Acabou o domingo, acabou a festa, a risada a alegria. Hora de voltar para a vida dura do dia a dia. Estudar, trabalhar, seguir em frente. Tem uma vida inteira que vem depois desta tarde.
Mas essa tarde, como muitas outras sei que ficará eterna em mim. Sempre de alguma forma estarei por ali, comendo a carne, correndo pelo terreiro, ouvindo os mares de saudade, de riso alegria e choro lançarem sua ondas gigantescas sobre aquele terreiro e sobre toda a minha vida.
Acabou a tarde de domingo, como tudo acaba, ela acabou. E a vida segue. Outras tardes virão. A vida é como aquela reunião no terreiro alternância entre canções tristes e alegres, entre as risadas largas e os choros doídos. Celebração e saudade. E vai ser sempre assim igual ao contínuo sobe e desce do morro da fábrica. Esse movimento da vida que nos antolha o bem e o mal, o alto e o baixo a alegria e a dor, esse inquietar constante que em algumas vezes assusta e noutras fascina.
Nem sei como um menino como eu pode pensar essas coisas, mas sei que a saudade um dia vai fazer essa tarde voltar, numa canção, nas cores do horizonte, na lembrança do som daquela risada, do burburinho, no timbre das vozes de todos eles que ficaram guardadas lá no fundo da memória, nos acordes do violão, no cheiro e no sabor da carne cozida, no som da bola quicando para lá e cá, num radio velho tocando aquelas músicas me lembrando que saudade não tem idade... e também aqui, nesse meu mundo das letras através dessa fascinante máquina do tempo das páginas.
***
“Aquelas tardes de domingo quantas alegrias, velhos tempos belos dias”.
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