Gostos cultivados
Nos últimos dias, dado o recesso esperado, comecei o tradicional costume: faxinas nos armários.
Essa época do ano, mês em que se finda o ciclo dos doze meses, é natural ouvir as pessoas dizerem que estão organizando as gavetas; é indispensável tirar as tralhas e revisitar o guarda-roupa.
Eu, particularmente, adoro tal atividade. Desde que li um livro sobre arrumação, adotei este feito - o de desfazer-me de cacarecos e roupas que não me servem - executado em ocasiões oportunas.
Acompanhando a realização, unindo o útil ao agradável, troquei a música - que amo, não duvidem - por podcast. Em um deles, a professora dizia que nossos gostos, na maioria das vezes, não são nossos, mas nos foram cultivados.
Essa reflexão, que há algum tempo ecoava no meu mundo das ideias (e já fora comentada em terapia) ganhou atenção especial. Refleti justamente na questão da música.
Sempre fui uma ouvinte incansável; para todos os momentos, tenho uma playlist elaborada na cachola. Criada num universo musical, desde criança nossa vida tivera uma trilha sonora.
Meu saudoso pai era apaixonado por música. Como profissão secundária e amor incontestável, ele respirava canções. Diante disso, tivemos, claro, nossos gostos semeados. Em meus irmãos os gostos pessoais do nosso velhinho não os alcançaram. Em mim, portanto, atingiram sobremaneira.
Não pude, como esperado e talvez desejo interno (dele), tornar-me musicista. Ainda que tivesse uma admiração indescritível, deixei que a insegurança, junto a vagareza para as exatas, dominassem minha vontade.
Por alguma razão, a qual não sei dizer a origem, tampouco quantos aniversários celebrara, encantei-me por música clássica. Em casa nunca tivera ouvido, exceto vez ou outra nos desenhos animados.
Quando passei a ouvir nos rádios os CD's (os quais foram-me emprestados) de Beethoven, Chopin, Tchaikovsky e Vivaldi, uma emoção não vivida tocou o meu ser.
Aquelas músicas, não apreciadas pelos meus círculos sociais e familiares, ganharam um lugar especial no meu coração. Diferente das demais, elas me proporcionam êxtase e emoção incomparáveis: é como se a cada nota tocada algo intrínseco e adormecido despertasse, trazendo consigo uma experiência única e vivaz.
Ao assistir o primeiro concerto tive a plena certeza: eu seria uma apreciadora eterna. Quanto mais fui ouvindo e lendo sobre a biografia de cada compositor, mais fui me apaixonando pela arte.
Hoje, percebo que este gênero merece ser admirado em toda sua grandeza e com toda a atenção e quietude necessárias, as quais nos levam ao ápice do deleite.
Talvez por isso, não seja aconselhado ouvi-lo enquanto se faxina; ainda que a sonoridade traga a leveza necessária, os detalhes grandiosos se perdem na atenção à desorganização. A música clássica, por sua vez, realiza uma faxina no imaginário e no âmago, removendo todas as impurezas outrora incutidas.
E os grandes clássicos, com toda sua ordenação, convidam ao arrebatamento reservado àqueles que o apreciam.