PISCA-PISCA
07/03/2008 - COTIDIANO V
Nem sempre é fácil fechar os olhos.
Nem sempre os vidros são transparentes.
Nem sempre é possível entender os sinais.
Acordei, com sono ainda. A noite foi arrastada. Mas o dia se impõe, atropelando a higiene e o café da manhã.
TEMPO
Os olhos abertos
Fui assistir a maravilhosa apresentação do coral no Colégio São Vicente de Paulo, ontem à noite. Duas sessões seguidas, e assistiria a terceira.
À frente do computador, escrevi varando a madrugada.
Entrei no carro. A descida da rua costuma ser lenta. O pessoal do Colégio Eliezer insiste em ignorar os demais moradores.
Abri o vidro, para dar bom-dia ao guardador.
Fechei o vidro para ligar o ar condicionado.
Andei trinta metros, bocejando.
Sinal fechado. Lembro da noite anterior.
Os olhos fechados
Deitei. Não dormi. Frases e sons ecoavam dentro de mim.
“Eu perco o sono e choro, sei que quase desespero, mas não sei porque. A noite é muito longa, eu sou capaz de certas coisas que eu não quis fazer”.
Abri de novo o vidro para entrar um pouco de ar fresco.
Pelo retrovisor vejo uma moto com dois garotos se aproximando por trás do carro.
Assaltam pra comprar maconha, dizem.
Fechei o vidro rápida e instintivamente.
"Será que alguma coisa, nisso tudo, faz sentido?
A vida é sempre um risco e eu tenho medo do perigo”.
O sinal abriu.
Retomo meu caminho e percebo o tempo mudando.
Vem muita água por aí, e eu não trouxe guarda-chuva
O sinal fechou.
Abro o vidro, chamo o ambulante que vende de tudo.
Ele pede uma força, tá nessa vida pra comprar o leite das crianças.
Comprei um guarda-chuva chinês.
"Lágrimas e chuva molham o vidro da janela, mas ninguém me vê. O mundo é muito injusto, eu vou plantando meus problemas, que eu quero esquecer.
Será que existe alguém ou algum motivo importante, que justifique a vida ou pelo menos este instante?"
Esta chuva forte, mesmo que passageira, deixa tudo mais lento e o carro enlameado.
Hoje não chego lá
O sinal tornou a abrir.
Parou de chover, apareceu sol forte e arco-íris.
O carro secou
"Eu vou contando as horas, e fico ouvindo passos.
Quem sabe o fim desta história? “
Ventou muito, choveu muito.
O vento trazia sons, e cheiros também. De água, de vento...de tiros.
O vento, os sons, os cheiros, a água, ...os tiros. O Tempo.
Passando
Sinal fechado, carro com lama, vidro aberto, sonolência.
Lá vem o garoto com aquela garrafinha e o rodo (é pra cachaça e cigarro).
Fecho o vidro, nunca se sabe, digo que não.
Por que não tiram esses moleques das ruas?
Ando mais um pouco, sinal fecha de novo, lugar policiado, tranqüilo.
Abro o vidro
Panfleto de imobiliária rica das mãos da adolescente faminta,
Pipoca de menino descalço a R$1,00
Futuro colega de profissão, pintado de verde, a R$ 0,50 (é pra chopada).
Será que a tinta não vai fazer mal a ele, coitado?
Os olhos abertos
Tinha visto minha filha menor e uma amiga, pela manhã, recolhendo donativos e mantimentos ao som de um pregão: _Natal Sem Fome
Tinha conversado à tarde com meu filho, sobre a retirada dos menores das ruas. Ele me indagou: _Vão fazer o que? Estoque de meninos?
Tinha sentido saudades da filha mais velha, talvez o dia inteiro, talvez todos os dias inteiros, sem perceber.
Trânsito livre.
Um vidro aberto e outro fechado, vento e economia de gasolina.
Não há mais sinais.
O caminho de todos os dias transcorreu sem que nada de novo acontecesse.
Mas, eu não sei bem porque, as imagens dos meus filhos, do guardador, dos jovens motoqueiros, do ambulante, do menino com a garrafa, da moça do panfleto, do guri da pipoca, do futuro colega colorido, insistem em piscar em verde e vermelho nos meus olhos sonolentos.
Preciso dirigir com mais cuidado.
Fechados ou abertos?
“Eu vejo um novo começo de era,
De gente fina, elegante e sincera,
Com habilidade pra dizer mais sim do que não.
.............
Que isto valha pra qualquer pessoa”.
Aos filhos, a todos os filhos, por mais um dia de ensinamentos.
E de confiança.
Sérgio Mourão Castiglione
Médico Pediatra
smcastiglione@yahoo.com.br