Os bilheteiros da sorte estão em extinção, vão ficar somente no folclore do passado

Os bilheteiros da sorte estão em extinção, vão ficar somente no folclore do passado

por Márcio de Ávila Rodrigues

[29/11/2023]

Três ou quatro décadas atrás, meu pai me contou uma historinha bem curiosa a respeito de um vendedor de bilhetes de loterias que, como muitos outros, vagava pelas ruas do centro de Belo Horizonte, vendendo a sorte.

Contou-me que um vendedor, obviamente após fazer uma rápida e bem disfarçada sondagem das pessoas em volta, deixava cair propositalmente um maço de bilhetes e continuava andando, como se não tivesse percebido. Sempre aparecia um bom samaritano que corria atrás dele para devolver.

Aí entrava o truque:

- Muito obrigado pela gentileza. Agradecia, fingindo-se surpreendido. Depois fazia alguns comentários genéricos e, então, soltava a sua cartada:

- Isso não pode ter sido só uma coincidência. Pode ter certeza que esse bilhete é a sua sorte. Pode comprar e você vai ganhar na loteria.

A malandragem inusitada, incomum, ficou na minha memória. Tempos depois, pelo menos uma década a mais, eu caminhava pela mesma região, centro de Belo Horizonte, quando caiu um bloquinho de bilhetes de um vendedor da loteria que caminhava na minha frente. Peguei e o chamei para entregar, ele agradeceu e começou a falar que aquele bilhete “nasceu” para mim. Foi o momento que meu cérebro conectou a velha história contada pelo meu pai, e dispensei o espertalhão.

Numa manhã de um dia bem recente, não no centro mas numa região de grande movimento da capital mineira - que é a principal área hospitalar da cidade e do Estado também -, um homem ligeiramente coroa me chamou e perguntou:

- 1951?

Não entendi, mas ele logo continuou:

- Este é o ano de seu nascimento? Pois tenho aqui um bilhete com seu número.

Ele aumentou em vários anos a minha idade, mas como não tenho maiores preocupações com vaidades e nem queria atrasar compromissos, reagi apenas com um monossilábico "hum”, que ele ainda repetiu de provocação. E segui o meu caminho.

Menos elaborado foi o caso de um senhorzinho, também vendedor de bilhetes lotéricos, que tinha freguesia na repartição pública onde eu trabalhava, uns 40 anos atrás, no alto de um prédio situado na praça principal do centro de Belo Horizonte. Como sempre trabalhei, ou acompanhei, corridas de cavalos, eu sempre pedia o bilhete do cavalo (que deveria terminar obrigatoriamente com as dezenas 41-42-43-44, de acordo com o jogo do bicho). Despreocupado com a conferência, levei muito tempo para descobrir que ele me entregava qualquer bilhete quando não tinha o pedido.

São casos de malandragens ingênuas, truquezinhos pequenos para induzir a freguesia, sem desonestidade. Bem diferente dos golpes criminosos, como o velho golpe dos bilhetes falsamente premiados. Neste caso, o golpista, com a ajuda de uma ou duas pessoas que se passam por meros transeuntes, induz uma pessoa ingênua a pagar por um bilhete já “corrido” uma boa quantia, na suposição de ter direito a um alto prêmio. A vítima pensa que está levando uma vantagem (obviamente desonesta) em relação a uma pessoa ingênua que está com dificuldades para resgatar o bilhete falsamente premiado.

Mas o mundo e seus costumes estão em rápida transformação, e os vendedores de bilhete não vão poder usar os velhos truquinhos de marketing - nem inventar novos - nos próximos anos. É que a profissão vai acabar, assim como outras tantas que já estão afetadas pelos avanços tecnológicos. A velha loteria de números aleatórios, explorada pelo governo, através da Caixa Econômica Federal, e suas similares estaduais, já foram rebaixadas à categoria de nicho de mercado, enquanto aguarda a inevitável extinção total.

E os bilheteiros não serão reaproveitados, pelo menos a grande maioria deles. O mercado de trabalho cada vez se fecha mais para as funções que não exigem nenhum tipo de formação técnica, principalmente as de escolaridade baixa. Quem se enquadra nesta categoria e nesta situação específica vai ter que sobreviver com benefícios promovidos pelo governo e ocupar o ócio com memes e videozinhos da internet.

Sobre o autor:

Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).

Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.

Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.