Crônicas da Fazenda da Grama (III)
Crônicas da Fazenda da Grama (III)
A ESTRADA DE ÁGUA DO JOÃO MURILO
_"Papai, papai, olha a Estrada de Água"
Lembrei dos meus barquinhos,
que em dias de chuva navegavam na correnteza que se formava ao lado do meio-fio,
ladeira abaixo na rua da minha infância,
até desaparecerem na curva ou se desmancharem em folhas de papel.
Da janela da sala,
a chuva fina lá fora,
embarco na viagem de cada folha que navega em meu riacho,
até sumir logo adiante.
Uma folha seguida por outra, e outra, e outra,
como se fossem um calendário da natureza marcando um tempo,
diferente e paralelo,
para a estrada da vida.
Neste meu canto,
do canto diurno de coleiros e canários,
o canto noturno é desse riozinho que percorre por alguns metros a minha alma,
ano após ano,
um "pequeno córrego que corta meu terreno",
a correnteza que conduz meus barquinhos de papel.
Águas que passam como a permitir sempre o recomeço,
a permanência,
e o saber paradoxal de que existe um lugar ali,
à frente da dobra que leva as folhas das árvores,
e as de papel,
para onde se vai num caminho sem volta,
sem jamais deixar de existir.
Passam como um andarilho perene,
que tudo transporta,
cria o passado,
alimenta o futuro,
contorna obstáculos,
turbilhona,
sorri,
desaparece nas curvas,
e ressurge aos meus sentidos.
Afastado dos meus tempos da perspicaz infância,
jamais procurara um nome ou sobrenome para ele,
que passa pela vida,
córrego,
riacho,
riozinho,
acrescentando os sons da noite e o novo à minha existência.
Eis que de repente,
ventania,
calmaria,
a folha nova que flutua ao meu lado estende a mão da inocência,
e grandes olhos negros sorriem para mim,
doces como jujubas vermelhas.
O pequeno corsário,
um recém-chegado à Teba,
sobe ao meu convés.
Jogando 39 graus a estibordo
me toma a pena,
o leme, o timão,
horizonte,
voz, comando.
Lembra de onde vim,
Mostra pra onde vou.
E batiza minha Estrada.