FARINHA DE OSSO

Autoria Múcio Ataide

www.mucioataideart.blogspot.com

O que está acontecendo? Eu vaguei até aqui, parecia que estava sonhando sem saber o que acontecia e agora acordei. E esse povo todo aqui? O que está acontecendo? O que isso? Olha lá, meu Deus! Mas aquele sou eu. Eu estou dentro daquele caixão de cor pastel? Epa! Eu também estou em pé em frente ao caixão. Sou eu lá e eu cá, mas que negócio é esse? Vamos parando com a palhaçada! Isso é loucura. Não pode estar acontecendo. Se eu estou lá, e eu estou cá, então morri. É morri, esse é o meu velório. Virei fantasma. Jesus! Um gasparzão no centro do velório. Olha só...

Então é assim que um morto vê o seu velório? Interessante, mas assustador... E por que eu não fui para o céu, ou para o inferno? O que estou fazendo aqui? Será que vou virar alma penada? Tenho que pagar algum pecado para depois subir? Ai deu uma insegurança! Que confusão! Meus pensamentos estão confusos, não sei se rio ou choro. Vai ver do lado de cá, depois da morte tudo seja confuso mesmo. Não sei nada sobre esse negócio de morrer. É a primeira vez que eu morro. Nem acredito que disse isso. E se nunca morri antes então talvez tenha que aprender sobre o assunto...

Vou observar as coisas por aqui:

O caixão é bonito, requintado, sempre achei os velórios elegantes. E logo acima dele a placa com o nome Tanatus Etério Flores. Ah esse nome é de morte, sempre me fez passar vergonha. Tomara que não exista bullying entre os espíritos. Mas o pessoal teve bom gosto para escolher a minha caixa heim... Olha só. O caixão é bonito, mas eu tô feio. Apesar de todo o trabalho de maquiagem da funerária eu sinto que falta algo ali, acho que falta vida nos traços, um pouco de palidez ainda escapa. Ai a minha boca está colada, ui deu um aflição aqui agora, melhor respirar pelo nariz. Eu estou confundido tudo, estou no limbo nem lá nem cá. As coisas de lá não são como as de cá, eu já deixei as de lá, mas acostumar é difícil. Acho que a maquiagem me embranqueceu. Mudou a tonalidade de pele? Branca de tudo. Gente agora sou calcasiano? Confundi de novo, o brancão não é o presuntão la no centro da sala não, é esse fantasma que está em pé aqui. Branco, mas branco mesmo. Quase transparente. Quase não ,transparente mesmo , eu vejo la no outro lado. Será que posso atravessar parede? Vou tentar:

Uau que delicia! Posso passar de um lado para outro. Para lá e para cá.

E voar? Vamos ver. Subindoooo. Olha que maneiro estou vendo a cabeça de todos.

Olha só quanta gente! E não é que eu era querido? Ah mas vai ver muita gente veio por pura curiosidade.

Vou andar por aí.

Estou sentindo falta dos meus irmãos. Ah já sei eles moram longe e ainda não chegaram

– Mãe! Oh mãe, não chora mãe. Eu estou aqui. Não morri, não. Quero dizer, morri, mas tô aqui. Eu morri e não morri. Ah confundi o trem tudo mãe. Olha pra mim, mãe, fala comigo. Por favor. Não pode me ver nem ouvir. Que horror! Mas não chora que eu choro também. Me dá um abraço. - “Ah não minha mão atravessou o corpo da minha mãe.” Ela não pode me ver, nem ouvir nem sentir meu toque. Nem eu sinto quando a abraço. Que tristeza nunca mais vou poder abraça-la. Pode ficar tranquila que eu vou encontrar com o pai lá no céu. E vou dar uma abração apertado nele, vou dizer que a senhora chora toda noite sentindo a falta dele. É só eu chegar lá. De isprito pra isprito deve poder abraçar. Vamos bater longos papos, cantar e contar piadas. E se lá tiver a gente a gente toma uma pinguinha juntos. Se não tiver violão a gente rouba a harpa de um anjinho qualquer. Vai ser uma farra só mãe. Quando chegar lá. Não sei quando, mas acredito que vou chegar. Se eu for pro céu, mas é capaz que vou. Eu tinha uns pecadim, mas não eram muitos não. Capaz que escapo mãe. E eu te espero um dia lá é capaz que eu posso te abraçar de novo. Eu fico tão triste de deixar você aqui, não poder mais te dar aquele beijo que eu dava todo dia quando eu ia trabalhar.

E o povo achando que só quem fica que sofre.

Vou andar mais, Caminhar faz bem, quem caminha não morre cedo. esticar as pernas faz bem. Que pernas?

Mas perá como foi mesmo que eu morri? Como foi mesmo que eu morri...

Ah a estrada, eu tinha bebido e achei que os faróis daquela carreta eram duas motos em paralelas e tive a ideia de passar no meio delas. Ta explicado. Nem sei como que conseguiram preservar meu rosto, deve ser a única coisa preservada. O resto é farinha de osso e carne camuflados em terno bonito. Pedaços de um corpo. Frágil e vulnerável esse invólucro onde morei por tanto tempo. Farelo de gente, sepulcro caiado, mas elegante... No fundo tudo é pó de terra ou de osso.

"Curpa" minha. Agora fazer o que né? Chorar e fazer chorar.

Deu sede, vou beber água no bebedouro. A mão varou e a água na boca não entrou. Nunca mais sentirei o gosto gostoso da água.

E comida heim? Nossa, nunca mais vou comer aquele churrasco gostoso. A pizza do fim de semana. O X Bango, da lanchonete do Bango. E a lasanha da mãe. Ai nunca mais meu Deus. Nunca mais ela vai me ver comendo e elogiando... nunca mais os nossos almoço de domingo. Esse nunca é que mata a gente! Ah é demais pra mim.

Nunca mais conversar com os meus irmãos, contar piadas, falar de politica, fazer as minhas palhaçadas. As noites de sábado no bar do Túlio junto com a turma. Tudo acabou mesmo. Ai, tenho que fugir, fazer alguma coisa está me dando um desespero...

Os pensamentos do lado de cá são confusos não têm muita lógica não.

Vamos andar mais. Vamos espantar a tristeza.

– Zé, oh meu amigo Zé. Desculpa, eu te dei o bolo hoje na pescaria né? Era pra gente tá lá no rio agora de "advertino". E depois tomar aquela cervejinha geladinha comendo os peixinhos fritos. Eu fiz tudo errado, meti os pés pelas mãos meu companheiro, eu bebi antes da hora, eu fui imprudente. Eu sinto muito meu amigo. Sinto mesmo. Você foi sempre tão legal comigo. Obrigado por tudo meu camarada. Lamento zé, mas isso nunca mais. Sei que você sentira falta como eu vou sentir também.

Alice. A minha doce noiva Alice. Agora que você chegou? Olha eu sinto muito meu amor. Seria mês que vem o nosso grande dia. Tudo preparado. Ah minha querida. Desculpa. Meu sonho era te fazer feliz para todo o sempre. Nossos sonhos serão enterrados junto com esse monte de farinha de osso ali na grande caixa. Tudo acabado.

Quanta gente chorando. E quantos dizendo: não valemos nada. Do pó ao pó... Pra morrer... é tudo verdade. Um flash no vazio da existência e tudo zaz, vai embora. Faróis potentes que vêm na direção da gente e acabam com tudo.

Perdão mãe, perdão Alice. Meu amigo Zé valeu camarada.

Oh meus dois irmãos chegando. Meu Deus quanto choro. Esse ruído está atormentando os ouvidos que eu não tenho mais, e a boca que também não existe está seca. E a pele que não é pele está toda arrepiada.

Não me esqueçam, por favor. Perdão por tudo, eu digo mil vezes perdão meus amores. Não me esqueçam, eu não os esquecerei.

Vai ver o que estou sofrendo agora seja já o meu purgatório. Ver o mal que causei com meu vicio e a minha imprudência.

Sofro demais. Todas as dores me vêm. Ah não suporto, isso parece não parar nunca. Há quanto tempo estou neste velório? Mil anos? Duas eternidades? Estou preso aqui?

Agora sim acho que chegou a hora do sepultamento. Estão tocando violino. Ah que música triste! Estão tocando luzes da ribalta.

Minha cabeça com miolos sem miolos ainda se recorda da letra:

“Vidas que se acabam a sorrir. Luzes que se apagam nada mais. é sonhar em vão tentar aos outros iludir. Se o que se foi pra nós não voltará jamais. Para que chorar o que passou lamentar perdidas ilusões se o ideal que tanto nos acalentou renascerá em outros corações”.

Sinto que uma luz vem lá de cima, devagarinho vai se aproximando. Raios coloridos. Que coisa linda. Acho que a hora da despedida está chegando. Finalmente vou.

Hora também de fechar a tampa do monte de farinha de osso. A MÃE ESTÁ GRITANDO... TADINHA, TIRA ELA DAÍ. ALGUEM A SOCORRE, FAÇA ALGO POR ELA, eu não posso, eu não consigo fazer nada. Ajuda gente. Leva ela embora. Oh mãe adeus mãe te amarei por toda a eternidade. Obrigado por tudo. Meus irmãos, adeus queridos. Zé, pesca por mim, toma a gelada por mim. Levante o copo quem sabe alcance de lá o meu brinde. Mês que vem tem a festa do peão, vai lá e se divirta por mim também, do jeito que a gente sempre fazia. Aquela farra toda...

Amigos, parentes, vizinhos. Adeus.

O silencio desse cortejo é uma tortura a mais nas minhas penas.

E a luz lá de cima está mais próxima

Agora a grande caixa com o pó da efemeridade em forma de farinha de ossos vai descendo conduzida por pequenas roldanas. Uma tampa e pronto, aquela feição bonita do pescador, do bebedor, do noivo de Alice, do alegre e bonito moço nunca mais será vista. Acabou tudo

A luz está muito próxima agora.

Todos já foram. Apenas eu aqui olhando para esse túmulo. Último sinal de minha existência neste planeta.

Nada, nada me resta, entrego o meu espírito.

A luz agora ofusca a minha visão. E me envolve totalmente. Estou dentro dela. Quanto poder existe aqui! Quanta glória nesses raios carregados de mistério. De um mundo que só se conhece quando se passa para o lado de cá. Certa vez li em um livro que nem aqueles que elaboram as mais intricadas teorias sobre o mundo sobrenatural nada sabem sobre ele. Agora eu vou mesmo. Esse tempinho aqui foi só para me despedir ou para penar, porque esses instantes representaram mil anos para mim na matemática insana da eternidade.

Mas eu tinha que estar aqui porque não faria o menor sentido se eu não estivesse presente em meu próprio velório.

Estou subindo... Deixo a alma ser levada. Ela flutua por entre nuvens de algodão, é macio e gostoso aqui. Sem pensar, apenas mergulho numa sensação agradável, nessa luz intensa, no inominável, no mistério insondável que perturba a humanidade desde os seus primórdios. Sinto uma paz indescritível. Todas as dores ficaram lá embaixo, e uma felicidade inexplicável me envolve enquanto a luz me abraça.

Paro aqui essa estranha psicografia salpicada de humor reflexões e dos terrores da despedida, preciso parar, não me é autorizado prosseguir a narrativa, não posso revelar mais nada, porque você só vai saber quando chegar a sua vez.

Adeus.

P.s. Se for beber não dirija, não, não, é o contrário se for dirigir não beba.

Ass. Tanatus Etério Flores.