O VIZINHO TARADO - II
Lembram que escrevi sobre aquele vizinho que gostava de andar sozinho de elevador, ou melhor, fechar logo a porta e partir na moita, deixando outros usuários na saudade? Sim, acelerava a partida e fechava vigorosamente a porta quando algum outro pretendente se acercava apressado e esbaforido. Pois bem, acho que aquela inofensiva "tara" começou a acarretar-lhe problemas no prédio onde mora. Dia desses, contou-me que falavam dele pelas costas. Adivinhava, em vários condôminos, cochichos e olhares sutis de reprovação. Ponderei-lhe que podia estar ficando paranóico, mas me garantiu que tudo era fato. " Aprontaste alguma mais explícita?", perguntei. Asseverou-me que a vida continuava a mesma, que não houvera qualquer incidente muito expressivo que pudesse denunciar-lhe a mania. Apenas duas vezes correra algum risco de revelar-se. Aliás, comentou : sair do armário não, porque isto era coisa que envolvia sexo, a palavra correta era "revelação". Numa feita, excitado pela iminência da partida solitária ao 15º andar, ouvira a bateção de pernas de um casal afobado: retivera com firmeza a porta para que a máquina zarpasse sem piedade, mas os selvagens atracaram-se ainda em tempo na maçaneta e escancararam a entrada. "Foi aí que, de certo modo, entreguei-me ou quase, pois não consegui conter meu olhar de desagrado aos brutais invasores de privacidade, uma gente estouvada e agressiva". Houvera, enfim, certo constrangimento, mas, segundo ele, tudo ainda dentro das aparências de civilidade. Apesar de arrependido e triste com o episódio, não podia fazer retornar o tempo. E a vida prosseguiu sem novidades. Mês passado, porém, disse-me, fez ainda pior: "havia três ou quatro pessoas chegando ao prédio em direção à gaiola, eu estava um pouco mais à frente, cansado, sem muito saco. Não pretendia papo ou salamaleques com ninguém. Daí, apressei o passo e, quase correndo, pulei pra dentro do elevador, fechei a porta e deixei aquela galera plantada lá embaixo. Foi um doce alívio".
Eu não disse nada, só fiquei parado, pensando, pensando que, se ele se levantasse da mesa do bar onde estávamos e corresse sem pagar a conta, depois de tanto chope e petiscos, passava-lhe uma rasteira e acertava-lhe as paletas com uma das cadeira. Vai que a tara estivesse se espraiando.