O JUMENTO É SAGRADO

“- Menino, fala baixo, que hoje é dia santo! -Tu tai querendo morrer, é? -E quer saber duma coisa? Vão todos vocês, depressa tomar banho, porque de meio dia de hoje, até sexta-feira de meio dia pra tarde, não se pode tomar banho, porque isso é um grande pecado!”

Estávamos na manhã da Quinta-feira Santa. Eu, estava de os olhos arregalados e ouvidos atentos, a estes poderosos conselhos da minha mãe. Que ao mesmo tempo era como regra para mim e era uma poderosa lei para os meus doze irmãos, que viviam no meu reduto familiar.

Eu cresci escutando estas e outras expressões costumeiras no período da Páscoa. Dona Soledade minha mãe, herdara de Severino Mororó seu pai e nosso avô, as crenças e costumes das antigas tradições do catolicismo. E este meu avô, que chamávamos de “Pai Biu”, era católico, apostólico, romano “do pé roxo”, como se dizia lá pra nós. Mamãe passara literalmente para nós estes costumes.

A Semana Santa era para nós, um período com um altíssimo grau de santidade e todos aqueles dias que se estendiam desde o Domingo de Ramos até oito dias depois no Domingo da Ressurreição, eram reverenciados por todos nós, com altíssimo respeito. Pela antiga tradição católica, nestes dias mais do que os outros, deveria se rezar pelo menos três vezes ao dia, não se podia falar alto, não apelidar nem chamar nome com ninguém (xingar), deveria andar somente a pé e devagar, não se maltratava e nem se matava um bicho de qualidade nenhuma. Pois qualquer destas ações seria grande pecado diante de Deus.

Nesse período, o jejum era sagrado (teria que ter). Era praticado da seguinte forma: no café da manhã, se comia apenas uma banda de um pão francês com uma xícara de café. Não se comia mais nada até pontualmente ao meio-dia, quando era servido o almoço.

Uma dessas feitas, antes do almoço, já umas onze horas da manhã, um sol quente tinindo, como se dizia na época, mamãe saiu fora, com o seu costumeiro lenço amarrado na cabeça e seu aspecto judicial e me deu a seguinte ordem:

- Vá levar esse jumento pra beber água no açude, que tá quase na hora do almoço! O animal que estava amarrado com corda longa, pastando no aceiro do terreiro, nem parecia que estava com esta sede que fora anunciada. Eu que nunca me acostumava com aquele jejum, estava apelando que chegasse a hora do almoço. Pois, já estava amarelando de fome. Então pensando em acelerar o processo de transição entre o trajeto de ida e vinda ao açude, que distava de uns quatrocentos metros de nossa casa, expressei o seguinte pedido: - Mãe, eu posso ir montado no Jumento? Daí ela apertou o lenço na cabeça e chegou junto de nós que estávamos assentados debaixo do grande e sombreiro juazeiro nas margens do terreiro e me advertiu dizendo: - Tu queres ficar “apregado” em cima do bicho é? E vocês não sabem que dia de hoje, se andar montado de jeito nenhum, que isso é pecado? Ela emendou dizendo: - Ainda mais que ele é um animal abençoado! Foi nele que Nossa Senhora andou monta e carregou o Menino Jesus e também Jesus na Semana Santa, no Domingo de Ramos, entrou em Jerusalém montado num animal desse! O Jumento é Sagrado. Vá depressa levar ele para beber água! Vá e venha a pé ligeiro pra não passar das 12h! Eu não disse mais nada e obedeci ao comando depressa. Fui e voltei “no pingo do mio dia” e cheguei antes da hora do almoço.

Aí, a gente se esbaldava de comer no banquete do almoço e o incrível era que não tinha pecado nenhum em comer muito nessa hora. E a farta mesa, estava repleta dos diferentes pratos da culinária nordestina. O bredo de coco, fava de coco, feijão verde, peixe frito, peixe de coco, quiabada, couve, salada de alface e outras especialidades da minha mãe.

Depois do almoço, era depois e não antes, mamãe rezava uma oração decorada que ela chamava de “jaculatória” e aí voltava-se ao jejum de não comer mais nada, até a janta à noite. Na hora da janta, não havia muita regara para a quantidade, poderia se comer razoavelmente.

Para fechar o período de jejum, após a janta, era feita por mamãe mais uma daquelas rezas. E depois ela ficava rezando um terço, sentada numa cadeira de balanço em frente a um oratório que havia, com santos de todas as diversidades. Os santos estavam todos cobertos. Cada um era coberto com um pano roxo. Tantos os santos que ficavam pendurados nos quadros na parede, como as estátuas que ficavam no oratório. Mamãe dizia que os panos eram roxos porque era a cor escura de luto pela Paixão e Morte de Jesus. E que tinha que cobrir os santos porque nesse período o Diábo passaria fazendo careta para os santos. Eles eram cobertos para que não vissem esta ação do maligno.

A minha mãe era uma e rezadeira de primeira qualidade. Pra todo mal ela tinha um benzimento. Era uma reza e um chá. Pra todo mal ela tinha um remédio. Atendia toda a vizinhança que vinha até ela quando sentia algum incômodo. Seu Raimundo Peres, um estimado senhor que era nosso vizinho, ele contava uma anedota que dizia, “Um dia chegou na casa de Dona Soledade, um cidadão carpinteiro montado num jumento, com sua bolsa de ferramentas e estava sentindo dor de dente. Dona Soledade rezou aquele senhor e passou a dor, o dente caiu, caiu os dentes do jumento que ele vinha montado e quando ele olhou as ferramentas, tinha caídos todos os dentes do serrote!” Nós morríamos de rir com ele contando isso.

Uma certa Sexta-Feria da Paixão, tivemos que quebrar todos estes protocolos sagrados, por causa de um acontecimento que trago na memória até hoje. No nosso sítio tínhamos alguns animais de estimação e entre os tais, tinha três cachorros belíssimos e que nós éramos muito apegados a estes animais como qualquer criança ou adolescente. Um grande cachorro de raça mestiça de labrador de cor branca, chamado Provedor, outro cachorro de menor porte de nome de Peri, de cor preto e branco e uma Cadela grande rajada chamada Jupira. A cadela estava de cria com vários cachorrinhos lindos. E nossa linda Jupira pegou a doença de “raiva” e eu lembro que ela estava amarrada e começou atacar seus filhotes. Mamãe percebeu que ela havia contaminado os outros cães. E precisou tomar uma difícil decisão que foi mandar sacrificar os animais. Sr. Raimundo o nosso vizinho, foi chamado com os seus filhos rapazes, para executar essa dolorosa ação. Para nós aquele dia, foi como “Um Dia de Juízo”. Eu prefiro não ser mais explícito aqui, porque talvez ou fosse tocar profundo o emocional do leitor. Mas, aquela Sexta-Feira Santa, foi a mais triste que eu vivencie. Porém a nossa mãe nos confortou nos ensinando sobre as causas e os efeitos do ocorrido naquele momento.

Esses ensinamentos formaram a base de conhecimentos que carrego sobre a cultura do nosso povo. Espero que sejam replicados para as gerações futuras a fim de que haja a conservação do conhecimento dos valores culturais da nossa gente.

Thiago Alves

Thiago Alves Poeta
Enviado por Thiago Alves Poeta em 28/09/2023
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