Uma Vida de Circo XIX

Um Natal

Véspera de Natal, o dia amanhecendo triste e nublado.

Logo cedinho, saltei da cama. Tinha muito trabalho a fazer, além da lida de todos os dias. Eu ia preparar tudo para a ceia do Natal.

Era um dia especial. Enfeitei a casa toda, preparei biscoitos, bolos, doces, fiz uma grande torta enfeitada, com os dizeres: “Feliz Natal”.

As crianças estavam alegres com os pedidos que fizeram ao Papai Noel.

Naquele tempo, ainda se acreditava que era realmente o Papai Noel que trazia os presentes. Bons tempos!

Quando chegou a tardinha, comecei a preparar as crianças. Tinha feito para as meninas lindos vestidos de organdi com grandes laços na cintura. Em seus cabelos amarrei fitas de cetim.

Terezinha era uma menina muito linda, loira e gordinha. Parecia uma boneca, mas era levada e teimosa. Estava com quatro anos, idade em que as crianças ficam mais custosas.

- Mamãe, deixa eu brincar na rua com as meninas, pediu-me.

- Não pode, senão vai sujar o vestidinho novo. As crianças são maiores que você e vão te bater.

- Deixa, mamãe, deixa! E começou a fazer o maior berreiro.

- Pode ir, mas não vai sujar a roupa, pois logo vamos à igreja.

- Ver o Menino Jesus?

- Sim, ver o Menino Jesus.

Coloquei o meu melhor vestido e fui preparar a mamadeira de Marisa, que era bebezinho ainda.

Estava na cozinha, quando ouvi um grito. Reconheci que era a Terezinha que gritava.

Com Marisa ao colo corri para ver o que tinha acontecido. Terezinha chorava muito.

- O que aconteceu? Perguntei-lhe.

- Pisei no buraquinho. Meu pé está doendo. Chorando dizia.

- Vamos para casa. Isto não é nada. Mamãe vai por remédio e logo vai passar.

Ela continuava chorando:

- Ai, meu pé, ai, meu pé!

Já tinha escurecido. Eram seis horas da tarde e o órgão da igreja tocava “Noite Feliz”.

Terezinha não parava de chorar. Eu não sabia o que fazer. Tinha colocado, em seu pezinho, álcool canforado, arnica, e ela continuava a gritar:

- Ai, meu pé, ai, meu pé!

Até que começou a vomitar. Fiquei desesperada. As crianças chorando. Não tinha médico na cidade, nem telefone.

Disse para meu filho:

- Celso, corre e vai procurar seu pai. Diga para ele vir correndo. Terezinha está mal.

Na igreja continuava a tocar “Noite Feliz”.

Terezinha piorava, suando, suando até que desmaiou.

O pai dela chegou correndo, nervoso. Ao ver a filha naquele estado ficou desesperado e disse:

- Vou à Divinópolis buscar um médico.

Chovia muito e as estradas eram de chão. Os vizinhos começaram a chegar e a oferecer ajuda. Eu rezava para o médico chegar logo.

Terezinha piorava. Já era tarde da noite, quando o médico chegou. Como era noite de Natal, foi difícil encontrá-lo.

O médico, Dr. Dulphe, examinando a minha filhinha, olhou para mim e disse penalizado:

- Minha senhora, cheguei tarde. Não posso fazer nada. Ela está morrendo. Foi picada por um inseto, talvez um escorpião.

Aquelas palavras foram uma punhalada em meu coração. Não soube o que dizer.

Na igreja tocava-se “Noite Feliz”.

O fazendeiro, ao tomar conhecimento da morte de sua filha, ficou fora de si e caiu no chão desmaiado. Deu muito trabalho, pois não se conformava. Estava acostumado a resolver todos os problemas. Sentia-se um derrotado. Adoeceu gravemente com depressão. Precisou ser internado e passou meses em tratamento até que teve alta.

Depois daquela tragédia, o homem não era mais o mesmo. Tornou-se mais agressivo, bebendo muito e revoltado.

- Vamos mudar desta cidade, disse-me. Minha filha morreu por falta de recursos.

Eu concordei. Sempre fui muito religiosa e buscava em Deus forças para vencer os reveses da vida.

Mas o tempo cura tudo. Aos poucos, aquela tragédia foi se tornando apenas uma saudade e nos mudamos para a cidade de Divinópolis.

- É uma cidade que tem bons médicos e colégios. As crianças precisam de estudar e você de um tratamento de saúde!

Mas o que ele não sabia é que eu não precisava de médicos e sim de carinho.

E naquela nova residência, o tempo foi passando. O peão de boiadeiro quase nunca ficava em casa. Passava a maior parte do tempo em sua cidade. Dizia que lá estavam seus negócios, os seus parentes e os seus amigos.

(Do livro “Retalhos de Uma Vida” - de Aparecida Nogueira)

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 23/12/2007
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