DEPOIS DE ELEITO

Agora que fui eleito, vou descansar e viver de verdade. Como nunca vivi antes. Trabalhei muito na campanha, cumprimentando gente pobre; fedorenta; inculta; desdentada. Tomei ao colo crianças sujas e melequentas. Só eu sei quantas vezes lavei os lábios com detergente ou álcool, depois de beijá-las repetidas vezes, quase a morrer de repulsa. Tive que abrir sorrisos largos onde a fedentina das valas a céu aberto arrombava minhas narinas. Lugares onde fossa, a bem da verdade, é coisa que se desconhece.

Como se tudo isso não bastasse, ainda gastei muito. Dei cestas básicas, dentaduras, promovi shows de pagode nas praças, e no dia da eleição distribuí dinheiro. Foram trinta reais para cada voto, pagos ali, na boca do caixa. Quero dizer, na boca de cada urna dos estabelecimentos que viraram zonas - eleitorais. Tinha de fazer isso, pois nunca fiz nada substancial por minha cidade; jamais promovi um ato de cidadania; não tenho em meu currículo nenhum trabalho, qualquer ação, sequer intermediação em favor deste povo inculto, acomodado, imediatista e bobo que me consagrou com seus milhares de votos.

Só espero doravante, que tal gentinha não me aborreça em meu descanso/mandato, cobrando projetos, trabalhos, obras, nada. Não devo necas à população; cada voto em mim foi regiamente pago. Minha cadeira política, longe de ser conquistada, foi comprada e muito bem; de maneira incontestável. Calo a boca de qualquer eleitor metido a cidadão que vier me aplicar lições de moral.

Mas prometo que, faltando meses para as próximas eleições (pois pretendo enriquecer mais do que já comecei, com tanta vadiagem bem remunerada e extras escusos), voltarei a fazer tudo o que fiz pela obtenção do cargo. Vou até botar nas ruas uns carros velhos e brancos, fingindo ser ambulâncias, para levar gentalha doente aos hospitais - ou açougues públicos - que não podem melhorar nunca. Senão acaba secando uma farta fonte de votos, que são os "s.o.s.", no que também pretendo investir.

Peço licença para me recolher à mordomia que aguarda os poderosos. Tomarei muito banho, gozarei de muito luxo, desfrutarei largamente do que o cargo oferece. Isto serve como vacina contra o bacilo da pobreza, já que, de quatro em quatro anos, para quem quer manter a carreira, o contato é inevitável. Charminhos à parte, fiquem certos que manterei essa "boca".

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 21/12/2007
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