Ônibus, o navio negreiro da modernidade
Foi Josué Montello, escritor lá da terra da minha mulher, e seu, “Os tambores de São Luís”, que fez com que eu ficasse pensativa, inquieta ao longo de todo percurso do ônibus que me trazia mais uma vez de volta para casa hoje.
Ao cruzar as ruas da periferia, naquela mesma rotina diária de sempre, olhando como de costume pela janela do ônibus, de súbito me toquei que, para qualquer canto que dirigisse meus olhos, praticamente só se via pretos, ou mestiços como a mim, que fora gerado, em muitos dos casos, pelo cruzamento de um pai branco e uma mãe negra.
Não sei exatamente a razão, mas na hora me bateu um sentimento angustiado, um aperto no peito, uma vontade de chorar, de gritar. Angústia que ao mesmo tempo se misturava com o orgulho da vitória: tentaram nos exterminar a todo custo, com todos os artifícios, os mais baixos que se possa imaginar, mas ainda continuamos aqui, vivos, resistindo!
Sim, estamos aqui, ainda suportando aos chicotes, não tão explícitos e visíveis como os de antes, mas ainda assim chicotes que deixam marcas profundas de dor em nossos corpos, em nossa alma.
Desde a abolição, a forma de clausura e exploração fora pouco a pouco sendo adaptada aos novos tempos. Das fazendas, nos transferiram para as fábricas. Das senzalas, passamos a morar em barracos nas favelas, ou em precárias casas de alvenaria nas muitas periferias abandonadas pelo Estado. Nossa condução de cada dia, de todos os dias, navio negreiro de outrora, passou a ser o famigerado ônibus.
No próximo desce, por favor.