Dedicação

Essa crônica é para as mulheres fortes desse tempo que lutam contra as falacias da modernidade e não se importam com rótulos. As mulheres que sabem que não é copiando os homens que irão ser mais mulheres.

A velhinha parecia tão frágil com aquele olhar vago, sentada na cadeira dura e fria da emergência.

Com o ritmo frenético do Pronto-Socorro é praticamente impossível alguém dar-lhe atenção.

Uma jovem técnica de enfermagem se aproxima com a prancheta na mão para abrir o prontuário.

A senhora está sozinha? Sim, minha filha.

Tem profissão? Dona de casa. Casada? Viúva.

Mora aqui perto? Dá uns vinte minutos andando, mas no meu passo, no seu deve ser uns dez.

O que a senhora está sentindo? Umas palpitações aqui no peito, dificuldade de respirar.

A jovem puxa um estetoscópio e põe às costas da senhora pedindo que respire com mais força. Depois mede a pressão e temperatura.

Acho que é só um resfriado. Foi o que eu pensei.

Espera aqui que eu já volto, vou ver se tem vaga na nebulização. Tá bem, minha filha, Deus lhe pague.

E aí, ela tá sozinha mesmo? Uma colega aproxima curiosa.

Pois é, dona de casa.

Viu? É isso que eu sempre digo, o que adianta a gente se dedicar tanto pra família e quando precisa cadê?

Eu que não fico em casa pra cuidar de filho, que nada. Já tô até vendo, ela vai tratar, melhora e vai embora viver a vida solitária.

Ai, você não pode falar isso. Não sabe nada dela.

E precisa saber? Olha lá, sozinha no mundo. Ela tem cara de ser dessas que nunca saiu de casa pra trabalhar, se anulou pra cuidar de filho e cadê eles nesse momento?

Ê isso que tô dizendo, cada um cuide de si mesmo.

Nossa, hoje você tá amarga, heim?

Né isso não, miga. É que eu vejo essas velhinhas sozinhas e penso o quanto elas perderam. Podiam estar aí felizes, com saúde, sem precisar correr pra um PS de hospital público pra cuidar de resfriado.

Deixa eu me adiantar, consegui uma vaga pra senhora.

Apesar das críticas a segunda técnica se compadece da velhinha. Ela se movimenta devagar e conduzida para a sala de nebulização, esboça um contagiante sorriso, que ela julga ser fruto de alguma demência pela vida sofrida que viveu.

Mas, afinal o que é a vida para as mulheres nos dias de hoje? Se dedicando ou não, o fim é sempre o mesmo. Sozinha abandonada, os filhos longe, o marido, se ainda estiver vivo, certamente estará com outra mulher. Nada adianta, o destino é a solidão. Não é?

Moça, cadê a minha biza, ela tá onde?

Um jovem com pouco mais de doze anos interrompe seus devaneios.

Qual é o nome dela?

Isaura.

Ah, a velhinha que veio sozinha. Ela tá na nebulização.

O rapaz se apressa em tomar o corredor indicado.

Dona enfermeira, sabe me dizer da senhora Isaura?

Ela tá na nebulização é por ali...

Oi, eu sou filho da senhora Isaura.

Espera aí, já tem gente lá, não posso permitir que entre.

Tudo bem, eu espero.

Logo chegam outras pessoas.

Aqui, eu sabia que ela só podia estar aqui. Ela é fogo, pedi pra me esperar que eu vinha junto.

Quem são vocês?

Ah, a gente é vizinho da dona Isaura. Eu ia trazer ela pra cá mas antes liguei pra filha dela, quando dei por mim...

Em pouco tempo família, amigos e vizinhos lotam a entrada do hospital, todos preocupados com dona Isaura.

E então, amiga, você ainda acha desperdício se dedicar às pessoas que ama?

M P Cândido
Enviado por M P Cândido em 26/05/2023
Reeditado em 05/06/2023
Código do texto: T7797801
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