Uma Vida de Circo VI

Os Pires dos Santos

A vida do circo não é um mar de rosas. Certa vez na cidade de Piraúba chovia muito. Era mês de dezembro. O povo não ia ao circo devido às chuvas. O diretor não tinha dinheiro para fazer vale para os artistas. Não tinha crédito na praça. As pequenas economias foram-se acabando. Os artistas estavam desesperados, vendendo tudo que tinha valor, passando a comer chuchu cozido com sal. Era o que tinha no quintal. Nesta época, alugamos uma casa, devido às chuvas, perto da igreja. Minha irmã Floripes e eu gostávamos de ir à igreja, escondidas de meu padrasto para ver o presépio do Menino Jesus e notávamos sempre que as pessoas rezavam e, ao sair, colocavam moedas nos pires que ficavam perto das imagens dos santos. Disse para minha irmã:

- Para que dinheiro para o santo, se ele não come, nem bebe. Nós é que estamos com fome.

Tivemos uma idéia. Quando o povo sair da igreja, nós pegamos emprestadas as moedas dos pires e vamos comprar pão e doce. Quando o circo estiver funcionando, nós colocamos o dinheiro de volta. E assim fizemos. Todas as noites deixávamos os pires vazios. Para nós não era roubo e, sim, empréstimo. Não tínhamos maldade. Éramos crianças inocentes.

Mas o sacristão estava desconfiado com o sumiço do dinheiro dos pires e ficou vigiando. Ele viu quando tiramos as moedinhas e fomos correndo para a padaria comprar pão. O sacristão contou para o vigário da paróquia. Ele não nos condenou e passou a ajudar na compra dos mantimentos até que o circo pudesse trabalhar. Foi o que sucedeu. Assim que o tempo melhorou, os espetáculos aconteceram e devolvemos o dinheiro dos santos.

Continuamos nossas viagens, arrumando e desarrumando malas, viajando de caminhão. Quando anoitecia, dormia-se embaixo do caminhão.

Assim, levava a minha vida que mais parecia um rosário de obrigações, representar, ensaiar, decorar, cantar etc.

Não tinha tempo para brincar. Quando parava era porque estava de castigo. Assim transcorreu minha infância atribulada, sem nunca poder freqüentar uma sala de aula. Tudo o que aprendi na vida foi com muita dificuldade, praticamente sem professor. Sempre pedia às pessoas que me ensinasse a fazer continhas ou escrever algum texto para eu copiar. Gostava muito de ler. Lamento, profundamente, não ter tido a oportunidade de estudar. É uma frustração que carrego comigo. No circo me criei. O picadeiro foi minha escola. Os meus livros foram os scripts e me formei na universidade da vida.

Eu representava

Muitas vezes amargurada

Sem poder deixar guardada a minha dor,

Quando entrava na arena

De mim ninguém tinha pena.

(Do livro “Retalhos de Uma Vida” - de Aparecida Nogueira)

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 15/12/2007
Reeditado em 16/12/2007
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