Uma Vida de Circo III
(Do livro “Retalhos de Uma Vida”)
Relatos de Aparecida Nogueira:
Logo começaram os ensaios. Nós, como enteadas do ensaidor, ensaiávamos separadas dos outros artistas. Para o meu padrasto, tínhamos que ser as melhores. Ensináva-nos os números mais difíceis. Via, em minha mãe e em nós crianças, uma fonte de renda.
Os ensaios eram cada vez mais apertados, na base do chicote, a ponto de, em uma cidade, um Juiz de Menores tomar conhecimento do fato e mandar um Oficial de Justiça assistir aos ensaios. Dizia ao ensaiador, meu padrasto:
- Castiga, Seu José (este era o nome do palhaço). Elas erraram. Ele, na maior falsidade, dizia:
- Não posso castigar, são crianças indefesas.
E nós não denunciávamos o nosso castigo. Éramos cúmplices de nossas próprias injustiças, pois tínhamos medo.
Certa vez, num ensaio, ele me disse:
- Hoje a aula é de salto mortal.
E apontando o chicote, continuou:
- Pode começar do jeito que ensinei.
Toda medrosa dei um salto e caí assentada. Ele gritou:
- Tenta de novo!
Caí novamente. Outra vez, gritou furioso, avisando-me de que se não acertasse ficaria de castigo depois do ensaio.
Eu estava nervosa e disse que estava cansada. Ele investiu contra mim com uma chicotada que acertou os meus olhos. Fiquei cega por muitos meses.
As crianças sempre foram injustiçadas e exploradas neste mundo pelos mais fortes, desde os tempos mais remotos. Isto eu senti na pele e, assim, de estado em estado, cidade em cidade, vilas e aldeias, fomos crescendo neste regime de cão e nos tornamos umas grandes artistas, as atrações do circo, no trapézio, no arame, na escada suspensa, no contorcionismo, no rola-rola e também nos dramas, nas comédias, tudo.
Maria, minha mãe, era uma portuguesa muito bonita de cabelos compridos. Meu padrasto amarrava uma argola em seus cabelos e pendurava em uma corda, numa altura de uns seis metros e a balançava em volta do picadeiro. Este número se chama força de cabelo e não depende de muitos ensaios. Só coragem! Maria não dizia nada. Só obedecia, pois tinha medo.
O tempo foi passando. O circo estava em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro na década de 30.
Era véspera de minha estréia. Acordei cedo e logo pulei da cama, para o ensaio de todo dia. Tinha tido uma noite de sobressalto, só pensando na minha primeira apresentação. O dia estava inundado de sol, mas eu nem via. Só pensava no que ia acontecer. Apesar de ter pouca idade, já era uma criança adulta.
(continua)