SRA CASHMERE

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Seguia em direção à igreja ,a rotina de todas as manhãs de Ana Rita. A mulher sessentona residente na pequena cidade era católica fervorosa e rezava enquanto fazia o pequeno trajeto entre sua casa e a matriz. O passar dos anos ainda não havia lhe roubado a beleza e certo frescor de juventude ainda a rondava. Não era baixa nem alta, nem muito gorda nem muito magra. Já sofria um pouco a ação do tempo, mas ainda era bela e viçosa. Andava espigada e ainda espalhava um pouco de beleza por onde passava. Sua pele branca ainda conservava um certo frescor e combinava bem com os cabelos compridos grisalhos e bem amarrados.

Saía todos os dias bem cedo. Era freguesa assídua da missa das seis. Tomava banho, vestia-se bem, usava sempre um vestido florido, comprido, não até os pés, mas que lhe cobrissem os joelhos. Passava o Cashmere Bouquet desodorante e sempre que era agredida pelo jato do líquido sentia um arrepio, o corpo respondia de forma agradável àquele carinho. Lembrava-se e ria da sobrinha que vivia dizendo que ninguém mais usava aquilo. Afinal de contas já estavam às beiras do ano 2000. Mas ela adorava aquele odor. Usava apenas uma vez por dia para poupar, Não podia deixar faltar. Era difícil encontrar o produto. Mas sempre conseguia um vidrinho. Um conhecido trazia da capital para ela todos os meses. Tomava banho, amarrava o cabelo usando a tirava marrom rajada que fora de sua mãe, aquela que era de plástico mas parecia de madeira. Calçava os seus inseparáveis sapatos pretos com desenhos floridos e saía sobre o frescor da manhã que a acolhia com o abraço de velhos amigos.

Ia rezando pelo caminho. Debulhando o terço de contas de lágrimas. Muito antigo também. O objeto sacro trazia o perfume de uma linda historia. Aquele terço fora feito por um padre há muitos anos, o homem era considerado um santo, e ela jamais se separava daquele objeto de devoção. Era um companheiro fiel que a acompanhava por todos os cantos.

Morava com a irmã, que também não tivera a sorte, ou o azar, de contrair o tal do matrimônio. Essa é uma expressão um tanto quanto estranha, pois falando assim até parece que é uma doença. Contrair, doença é que se contrai. Uma expressão esquisita, mas vai ver que é isso mesmo, pois tantos reclamam da vida a dois que às vezes até parece mesmo uma doença. Não, não fora acometida por esse mal, ou bem. Na juventude até teve alguns pretendentes e por muitas vezes a esperança adolescente de viver um grande amor invadiu os umbrais do seu coração, mas as coisas não se encaminharam para isso e o tempo foi passando e hoje esses assuntos já não mais fazem parte do repertório dos seus pensamentos. A solteirice seria seu destino até o fim dos dias. Assim havia determinado: seria uma senhora, virgem, casta, pura, descentemente sozinha e voltada apenas para as coisas do lar e do alto.

Ficava horrorizada só em pensar sobre como as coisas acontecem nos namoros de hoje. Quanta indecência! E ficava abismada quando via pelas ruas os casais se atracando em cantos escuros. Já viu muitos assim. Em certas épocas do ano, cinco e meia da manhã ainda é noite. E em seu trajeto devocional matinal Já presenciara algumas coisas que não gostava de comentar e nem de pensar. Não fica bem para uma “moça’” de respeito ficar pensando nesses assuntos.

Foi professora do ensino fundamental, rígida e competente em sua função ajudou a formar muitas crianças, sempre dentro dos mais rígidos princípios da moral e do respeito. Era boa em duas coisas, na matemática e nos conselhos. Um pouco rígida às vezes na hora de corrigir os alunos usando métodos que hoje já não são mais permitidos, mas que segundo os seus conceitos funcionavam muito bem.

Sua vida era simples, rotineira e ascética. Não gostava de ver tv porque hoje em dia só existe imoralidade. Não permitia que em sua casa os sobrinhos conversassem sobre certos assuntos. E tinha horror à tecnologia, computadores celulares, essas coisas... Ferramentas do diabo para espalhar a imoralidade e destruir a família e seus valores.

Policiava seus pensamentos por que ervas daninhas sempre brotam na cabeça da gente. Elas entram sorrateiras e vão ali se ramificando. Seus tentáculos vão entranhando no corpo e na alma e fazem exalar as fragrâncias do pecado. O pensamento é nosso maior inimigo. Desejava mantê-lo sobre controle.

Procura se afastar de tudo o que é mau, e para isso está sempre se arrependendo dos seus pecados. Confessa-se quase toda a semana e faz mil penitências para apagar a mancha que a acompanha todos os dias.

É aquele spray sua perdição. Aquele delicioso spray, maldito spray do pecado. Ela deveria largá-lo, mas precisava dele. Tinha necessidade dele. Porque no momento em que o jato saído do vidro do Cashmere Bouquet cruzava os ares atingia o seu corpo, a magica acontecia, todas as repreensões iam embora , todo o pecado se apagava e tudo era permitido. O êxtase do contato do líquido com a pele a arrepiava e acordava um lado esquecido e abafado dentro dela. O Sr. Cashmere sabia romper a barreira, fazer saltar para fora o que estava guardado e bem guardado. De um ramo murcho fazia desabrochar a mulher de pétalas viçosas e belas que ali ainda existia. Ele era como um marido que tinha permissão, que podia tudo. Naquele momento do esguicho nada era proibido.

Esconde de si mesma seus pensamentos enquanto caminha: daqui a pouco a missa para limpar a alma, depois o dia rotineiro e sem graça, a noite ascética de preces e sacrifícios. Mas amanhã de manhã outra vez o jato frio, refrescante, gostoso, o êxtase de alguns minutos que rompe barreiras e faz resgatar algo perdido. Tudo ainda está lá.

Outra manhã, outra vez o prazer de se entregar ao seu dono senhor Cashmere.