Tv. dos Mártires (Cap. 2)

A multidão, entretanto, não se espantou com a aparência sinistra da criatura, inclusive, sequer desviaram o olhar do cadáver que, nesse momento, os vermes já encontravam-se à espreita para roer os detritos. Mas, Aurora avistava, de longe, aquela criatura grotesca e inerte que aparentava analisá-la obsessivamente, quase com intuito em pronunciar algo que relativamente já era de seu conhecimento, porém, Aurora conteve-se em decifrar as intenções daquela criatura horripilante ainda que sem aspectos ameaçadores. O que amedrontou, ainda mais, Aurora ao espiar outra vez a figura da criatura, que agora assemelhava-se à sombra de um vitral cor de púrpura com conformações infernais harmoniosas até. Aurora olhava ao redor, e avistava uma noite calma, com muitas negras nuvens que pairavam densas no céu, enquanto, a brisa, se é que tinha alguma - pensou preocupada, não fez questão em perambular um pouco por ali, para assim amenizar a sensação de afogamento que ali cumpria.

A sensação de toda aquela apneia infernal fez com que a curiosidade alfinetasse sutilmente os sete sentidos da garota, visto que ela tentou livrar-se do suor frio que acariciava suavemente pela sua testa retinta, antes de atingir a superfície das pontas do seu cabelo negro, volumoso e denso sobre os ombros firmes e musculosos. A visão era turva, a respiração quase não se sentia, mas ouvia - com grande dificuldade - dois pares de olhos cor de púrpura que a seguia com desejo, com luxúria, com ousadia. Aurora, atemorizada com o silêncio e o frio que se exprimia - além dos dois grandes olhos que a perseguiam em qualquer esquina escura, que sua mente seguia, embalou seus pensamentos em uma espécie de letargia espiritual, e litigava, por vezes, pelo seu espírito ávido em sair daquele casulo orgânico que o confinava no submerso do estranho vazio. Porém, ao sair do estado de torpor, Aurora sentiu, ainda mais, interesse pela sensação que a afligia, assim como, pela criatura que a perseguia, o que, por sua vez, fez com que ela cogitasse obstinadamente aproxima-se da esquisitice que lá havia.

Aurora tenta mover-se calmamente, embora sentisse que a própria brisa estava a carregar seus passos até o local da criatura horrenda, quase como se estivesse em um estado de transe hipnótico ou letargia, mas logo não obtém sucesso. Quando de repente, uma sensação horripilante agarra seus braços, fazendo com que sua consciência, de súbito, retornasse ao seu corpo em uma fração de segundos. Mesmo com o súbito retorno, Aurora não compreendia a estranha sensação que agora a perturbava incessantemente quanto tentava olhar ao seu redor, porém, não tinha sucesso - a garota notou, certamente, que suas ligações sinápticas já não controlavam sua matéria, mas seus olhos enxergavam - de alguma maneira seus olhos serviram como uma janela, em que era possível enxergar sua matéria quase podre escorrer como lama orgânica para o bueiro da rua. Aurora abriu os olhos, ainda sem compreender se seu estado mental agora seria um pequeno lapso de lucidez ou mais uma paranoia, quando um tipo de agouro sinistro se estendeu na montanha à sua frente. Uma sensação de perseguição fez seus batimentos cardíacos dispararem em uma fração de segundos; e de fato a garota ouvia sons de passos densos e obstinados, porém, um certo esvaziamento de sua consciência embalou seu único sentido, ainda funcional em toda aquele detrito, pois, seus olhos agora testemunharam, nada mais nada menos, que a própria criatura rastejando em sua direção e afastando-se da carcaça bixada do outro lado da calçada, cuja as manchas de sangue desnudam o assassinato de outrora.

Um zumbido grave e agonizante se difundia entre êxtase e a lucidez em que a garota sentia. Por vez, Aurora conseguia vislumbrar, como um show de mágica, a gravidade assediar e desejar seu corpo na matéria bruta e fria da calçada e, dessa forma, fazendo sua vitalidade esvair-se de seu corpo, sem nem pestanejar ou cogitar o deleite de uma morada fixa. Assim, restando apenas a serena e tranquila ataraxia. Já o seu espírito - se é que havia, encontrava-se em uma luta frenética entre físico e sensível - o silêncio e o frio, jazia nessa sensação ilógica que a percorria. Sem mais, com os olhos abertos mas temendo que um possível delírio se aproximasse do seu pequeno fragmento de lucidez, Aurora não entendia aquilo que enxergava senão o rosto de um homem maduro - com expressões rígidas de miséria, entretanto, a garota admirava a forma como seu incisivo sobressaia-se de sua pequena boca hora negra hora rosada. O homem, que agora a segurava nos braços firmemente lhe era familiar de alguma forma e, de certo modo, o homem a conhecia tanto quanto ela naquele momento, já que ele a olhava nos olhos fixamente e suas feições tinha um aspecto de um certo pânico mortal, enquanto lágrimas de cor púrpuras - sinistras e suspeitas, escorriam de seu rosto, assim, fazendo-a relembrar da mesma sensação de outrora, ainda quando fixava a criatura que a observava de longe naquele exato momento junto à multidão e ao cadáver já enegrecido e transpirando uma poeira com odor fétido repleto de vermes.

Aurora fixava o homem que tinha em seus braços, mas ele aparentava estar confuso e tinha feições obscuras. A garota exprimiu curiosidade em sua face pálida e cadavérica, o que provavelmente chamou a atenção do homem, que permanecia inerte na mesma posição de início. O homem tinha seus olhos fixos em Aurora - a olhava profundissimamente, na imundice da calçada, enquanto voltava sua atenção hora para o corpo cansado e quase sem vida da pobre menina, hora para uma segunda mulher que transbordava ares de ostentação narcisista; quem sabe lá o papel que lhe cabia, porém, aquele homem a fixava comedidamente, enquanto seu rosto tomava a forma das cores ternas do remorso e da culpa ambulante, que o tomava em seus braços. A mulher, porém, se acovardou, seus olhos procuravam os de Aurora de maneira ambígua - quase já afirmando aquilo que não ousava fazer; e a culpa, sem demorar, já se via tecido - como uma tapeçaria, na carne daquele rosto de sorriso medonho. Mesmo sem desejar, Aurora entendeu a linha tênue que ligava aqueles dois olhares obscuros e omissos, porém fixos e amedrontados pela desgraça programada para suas almas errantes. Sem mais, Aurora tocou o rosto do homem e sorriu apenas, embalou a estranha sensação que pairava entre as cores e os ruídos da noite, até sua consciência exaurir-se e restar apenas um desejo - um tanto expresso na consciência quanto falado alto e claro, ela apenas soltou como mais um ruído noturno:

Sigo viajando através da carne pelos tempos e milênios

Acumulando dores e perdendo amores

Mas eu jamais pensei que falaria isso que hei de falar

Ainda com o par de olhos a me espreitar

Talvez em outra vida, haverás de pagar

Mas espero jamais te encontrar, François.

Rapidamente, deixou a carcaça dos detritos para os abutres e vermes saciar-lhes a fome, e partiu para a realidade subjetiva. Já a Criatura desapareceu como uma poeira cor de ouro solene com perfume de maresia, sob a luz da Aurora que renascia na Tv. dos Mártires, bem próxima à Av. da Integridade.