Graciliano Ramos
Parte 1: No apartamento de Silvina
Estou seriamente desconfiado que esse apartamento da Silvina foi construído sobre um vulcão. Ou, senão de um vulcão, a pouco metros acima do inferno. Que forno dos diabos isso aqui! O calor é de cozinhar a gente vivo, é preciso beber constantemente goles d’águas direto no gargalo da garrafa para não desidratar. O gatinho que passa seus dias em cima do beiral da janela do apartamento da frente em busca de um refresco, que o diga.
Porém, justiça seja feita, apesar da quentura, aqui, nesse condomínio Bem Viver, para quem gosta de tranquilidade, vive-se realmente bem. Faz jus o nome. O lugar é só sossego. Se amanhece com o som dos passarinhos e se anoitece com o das cigarras. Um mansarrão. Vá lá que no meio de toda essa pacatez, desses sons vindos da natureza que apaziguam o ambiente, existem também os sons estridentes que ressoam da quadra de futebol de uma escola vizinha, vez ou outra uma briga de casal no bloco ao lado, de zoada de criança fazendo teima para os pais... Porém, nada que realmente tire por muito tempo a paz do lugar.
Parte 2: Facada no bucho da minha autoestima de escrevedor
E por falar em escola. Quando não estou perdendo meu tempo, ou contribuindo com o desperdício de tempo de vida das crianças lá na José Benedito e na Santa (o que se é capaz de fazer pela sobrevivência), tenho me enfiado em Graciliano Ramos. Que humilhação! Que vergonha! O Graciliano é uma facada no bucho da minha autoestima de escrevedor. O pior é que não posso, como é mau costume meu, usar meu atraso no estudo como justificativa. O bendito Ramos só fez o Secundário (nome que se dava na época, o equivalente ao Ensino Médio de hoje em dia). Intencionalmente ou não, Graciliano não perdeu tempo, partiu logo cedo para o que realmente lhe era interessante: leitura.
Parte 3: Leitura
Leitura. Essa alegação eu poderia até usar. Comecei a ler tarde. O ambiente familiar não era lá de muita sapiência, as influências nesse sentido nunca existiram, aliás, não só não existiam dentro de casa, fora dela também. Veja bem, se a escola que era escola, não incentivava a leitura, quem mais o faria: o dono do boteco, o cabelereiro, o pastor, o gerente da biqueira? Essa era a fauna fortalezense, o ecossistema do bairro onde cresci. O resultado disso tudo é esse que lho apresento com uma certa insistência: as benditas mal traçadas linhas.
Parte 4: As mal traçadas linhas
Verdade. Estou sendo severo demais comigo, exagerando a autodepreciação (ou seria a boa e velha autocomiseração?) Até tenho traçado melhor elas, as linhas, ao longo desses anos (mesmo que a profundidade continua sendo a de um pires). Por outro lado, veja, por exemplo, essa oportunidade que estou tendo aqui nesse apartamento e não aproveito. fosse Graciliano, como ele costumava dizer, sapecava logo um conto, cavava alguns cobres. Mas o que faço? Dou apenas desculpas.
Parte 5: Por detrás da aparente calmaria dos condôminos, diversas histórias cabeludas esperando serem escritas
Por detrás da aparente calmaria dos condôminos, diversas histórias cabeludas esperando serem escritas. Isso aqui é a Janela Indiscreta do Hitchcock. Eu as escrevo? Não. E por que não? “Por não ter tido estudo”. “por ter começado a ler tarde”. “Por falta de tempo”. Pela puta que pariu! Papo furado, senhor Tiago! Papo furado!
Parte 6, final: De volta ao começo do texto
E se eu também me dependurasse no beiral da janela para uma refresca, que nem faz o gato do apartamento da frente?