O Viajante Emocional e a Criança Interior
O Viajante consultou suas anotações, constatando que estava viajando a exatos oito mil e setecentos e oitenta dias — vinte e quatro anos, dois meses e três semanas. Estava supostamente só e, muito, muito distante do ponto de partida, mas isto não o amedrontava — os viajantes não temem as longas estradas —, ele precisava alcançar a sua meta.
Ele não sabia exatamente onde estava naquele momento, haveria alguém por ali? Naquele local somente escuridão e silencio, mas os aparelhos internos de sua nave — sua própria sensibilidade — detectavam alguma coisa, havia um misto de múltiplas emoções no ar, dentre elas, angústia, muita angústia. "De onde vem estes sinais de angústia?" pensou o Viajante Emocional enquanto preparava o sistema interno de comunicação.
— Alguém na escuta, câmbio? — ninguém na escuta.
— Aqui é o Viajante, venho em paz, alguém consegue ouvir-me, alguém na escuta, câmbio? — silêncio absoluto, e depois de muitas tentativas nada do Viajante ouvir o tão desejado na escuta, prossiga câmbio!
Por algum tempo ainda o Viajante enviou através de seu rádio vários comunicados, no entanto, não recebeu nenhuma resposta, provavelmente não existiria vida naquele local, ou ainda, sua linguagem poderia ser ininteligível para quem supostamente ali habitava, sua vontade agora era simplesmente ligar os motores e continuar a viagem, mas aquela sensação tão profunda de angústia ainda permanecia na escuridão exterior, "sinto que tem vida lá fora, a angústia não dá no poste da rua e nem nas estrelas do céu", refletiu ele enquanto se preparava para sair de sua nave — os garimpeiros nunca desistem da busca pela grande pepita de ouro de suas vidas.
Saiu, e saindo caminhou lentamente escuridão adentro seguindo, tal como um cão farejador, o rastro daquela angústia sem fim. A cada passo sentia que estava mais perto de sua busca, a cada passo seu coração acelerava mais e mais, naquele instante ele poderia simplesmente dar meia volta e retornar, mas uma força poderosa dentro dele o movia de forma determinada em direção à sua meta, e, apesar do longo tempo de viagem, estranhamente aquele local soava para ele como algo familiar, apesar do seu longo tempo de viagem mundo emocional adentro — estaria ele adentrando algum reino encantado, algum reino enfeitiçado?
Depois de algum tempo de caminhada sua sensibilidade captou, não só angústia, mas agora também sentimentos de vazio, rejeição, medo, desamparo, abandono, vergonha, ansiedade, alegria, saudade, nostalgia... e o mais estranho era que tudo aquilo que ele captava externamente, sentia também de forma cada vez mais intensa dentro dele mesmo, "que local mais estranho este, talvez esteja enlouquecendo, onde será que estou afinal de contas?", pensou ele enquanto seguia escuridão adentro.
Tateando na escuridão ele tocou em algo, então de sua consciência veio a luz, e através da luz veio a descoberta; estava no quintal da casa de sua infância, e ali a fonte de todas aquelas emoções que ele agora sentia profundamente: Uma Criança que chorava encolhidinha dentro da casinha de um cachorrinho.
— Por que choras Criança? — perguntou o Viajante agachado no chão com os olhos cheios d'água.
— Faz muito tempo que um ser que muito amo viajou para muito longe, viajar é o seu ofício, minha dor é muito grande, e após sua última partida eu perdi completamente a esperança de que ele pudesse voltar um dia, tal o longo tempo de espera. Choro pelo abandono e pela saudade do viajante que partiu; choro pela nefasta perspectiva de jamais revê-lo novamente; choro, sobretudo, pelo sentimento de que fui rejeitado e esquecido para sempre. — Por que tu choras também? — inquiriu a Criança, com um olhar que de tão belo refletia a própria esperança.
— Faz muito tempo que viajo à procura de uma resposta para minha eterna angústia, minha dor é muito grande, e após minha partida eu nunca tive a certeza de que encontraria a resposta; choro pelo vazio e pela profunda dor de alguma coisa que falta em mim — respondeu o Viajante, com um olhar que de tão cansado revelava todas as suas viagens pelas várias veredas do mundo.
Neste instante o olhar do Viajante e o da Criança se encontraram e, sem palavras — o amor é tão silencioso quanto as estrelas do firmamento —, a Criança descobriu que o seu amado Viajante havia finalmente retornado ao lar, e o Viajante, por sua vez, sentiu no mais fundo de sua alma que a Criança ali abandonada era sua própria Criança Interior, que vivia perdida em algum canto do seu coração por longos anos, sem que ele tivesse consciência deste fato. Partilharam então um indescritível sentimento de alegria — o amor não cabe em palavras —, como se ambos tivessem, tal como Colombo, redescoberto a América quinhentos e vinte e quatro anos depois — a busca havia finalmente chegado ao fim.
O Viajante estendeu a mão e segurou na mão da Criança, que imediatamente deu um pequenino e trôpego passo em direção a ele, colocando-a amorosamente em seu colo. A Criança estava assustada; o Viajante caminhou com ela calmamente pelo dia que começava a raiar e enquanto caminhava mostrava para ela todas as coisas no seu entorno: O céu; as mangueiras frondosas; as pessoas que passavam pela rua; a casa; o cachorrinho vira lata; o morro distante coberto de capim gordura com flores avermelhadas; o velho velocípede; os soldadinhos de plástico; os antúrios e rosas de sua mãe; as bonecas de suas irmãs; as ferramentas do seu avô, o carpinteiro; as bolinhas de gude; a carreta vermelha estacionada no portão... Os olhos da Criança ficaram radiantes de luz por tanto acolhimento, por tanto amor.
Conduziu amorosamente a Criança o Viajante, como que bailando a grande valsa de sua vida com o ser amado sob os primeiros raios do sol da manhã, e, aos poucos, a Criança foi adormecendo, adormecendo, adormecendo... até finalmente despertar e irradiar uma profunda paz dentro dele mesmo, realizando aquela quase impossível jornada entre sua mente e o seu coração através de um pequenino e trôpego passo, um passo de amor, que de tão grandioso, fundiu aqueles dois seres de tal forma que não havia mais entre eles o permanente vazio do existir e a constante angústia do ser.
Naquele momento um vigia noturno vindo em direção à sua casa, ou ainda, um padeiro indo de encontro ao seu pão — nunca se soube ao certo — observou a cena de um homem com uma criança no seu colo, mas quando se afastou um pouco mais e virou para trás a cena era outra, pois agora era muito difícil distinguir quem era o homem e quem era a criança, tal a fusão entre os dois — aquela impressão poderia ter sido causada pela passada vigília da noite, ou pela perspectiva da massa do pão de cada dia.
Passado muito tempo, quando tudo o que foi narrado transformou-se numa lenda — não existem registros históricos —, alguns passaram a afirmar que o Viajante bailou com a Criança no seu colo por vinte e quatro anos, dois meses e três semanas, outros afirmavam categoricamente que o baile entre os dois jamais terminou, pois a valsa que os embalava, tal como a eternidade, não tinha nem princípio e nem fim.
Volta Redonda, 04 de Novembro de 2022.