Sombreiros ou Assombrações Codependentes?
Era uma vez um mês de Julho, não o de César, o grande imperador romano, mas mês de férias escolares, que maravilha! As malas estavam quase prontas, minha ansiedade era enorme, me sentia tão feliz quanto um cavalo trotando livremente pelas campinas; estava radiante de alegria por achar que minhas folgas escolares, ou para ser mais honesto, fuga da realidade, durariam por toda a eternidade e um pouco mais — adeus afazeres e deveres, adeus realidade árida, adeus detestáveis aulas de português, inglês e biologia, adeus professores severos... Assim são alguns codependentes.
Que venha a fantasia; que venha a terra encantada, berço dos meus pais e avós, com seus lindos jardins e extensos cafezais; que venham os lares funcionais com pessoas felizes e parentes maravilhosos; que venham a igreja, o convento e a escola nas colinas; que venham os riachos correndo com mansidão em direção ao mar... um sonho acordado em vida — os condependentes costumam sonhar com mundos paralelos, idealizados e perfeitos acabando, não raras vezes, despertando em grandes pesadelos existenciais.
Meia noite; estava embarcando naquele ônibus encantado juntamente com minha mãe. Qual a distância da realidade que eu não conseguia viver para a terra onde eu viveria feliz para sempre? Aproximadamente trezentos quilômetros, mas poderiam ser trezentos mil, ou mesmo cento e cinquenta milhões de quilômetros — a distância da terra ao sol —, qualquer distância é prazerosa de ser percorrida em direção à terra dos gozos eternos — os codependentes costumam viver sistematicamente à procura de um paraíso perdido, gastando muito de sua energia física, mental e emocional tentando encontrá-lo.
O ônibus trafegava na noite de sonho pela estrada encantada — um grande número de codependentes são sonhadores —, rumo ao norte da minha alegria; queria dormir o tempo todo, para rapidamente despertar com os primeiros raios do sol da manhã e a visão maravilhosa de verdes cafezais. Entre uma cochilada e outra, percebia os faróis do ônibus rompendo a escuridão, observando maravilhado inúmeros sombreiros (*) retorcidos nas margens da rodovia — quilômetros e quilômetros de sombreiros. Que árvores abençoadas, a cada uma que passava eu me sentia mais longe da minha realidade e mais perto da terra encantada. Tal era a intensidade das minhas emoções, que fazia agora um esforço para não dormir, apenas contemplando aqueles adoráveis sombreiros passando ligeiros pela janela e pela luz, para logo se perderem na escuridão da noite — vida longa a todos os sombreiros da terra!
Cansado de tanto contar sombreiros cultivados, plantados e encantados, fui finalmente envolvido pelo filho do deus Hipnos, Morfeu, o deus do sono, acordando sob a luz do sol, o verde dos cafezais, casas amarelas com portas abertas rente às calçadas, carroças, coretos, poeira, gente feliz de chapéu, gente feliz sem chapéu, abraços, ribeirão correndo manso entre as pedras... Estava finalmente em um paraíso infinitamente mais belo do que o de Dante Alighieri — por que mamãe abandonou o paraíso?
Apesar do meu intenso desejo de férias sem fim, minha eternidade deveria durar vinte dias, quando então eu deixaria de ser o príncipe encantado dos meus sonhos, para simplesmente voltar a ser o sapo desencantado de minha própria realidade — muitos codependentes são apaixonados por contos de fadas.
Conforme minhas expectativas, tudo correu bem no paraíso, caso contrário não seria o paraíso. Do primeiro ao décimo dia minha alegria era integral, nem me passava pela cabeça que um dia aquilo pudesse terminar, com cada instante vivido de forma plena, desde o amanhecer até ao anoitecer. A partir do décimo primeiro dia uma certa angústia começou a voltar do lugar onde nunca deixou de estar, e lá no fundo de minha alma eu começava a perceber que mais cedo ou mais tarde a realidade voltaria a bater na minha porta com a inevitável chegada do vigésimo dia.
Num destes dias paradisíacos, bati o olho em uma menina mais ou menos da minha idade, um encanto de beleza e delicadeza, uma princesa, a própria expressão da graciosidade feminina, uma beldade sem fim; naquele instante singular em minha vida, um verdadeiro divisor de águas, nasceu em mim uma certeza: Esta é a mulher mais bela do mundo, mais bela do que a bela adormecida, mais bela do que Branca de Neve — os codependentes costumam passar a vida em busca de príncipes e princesas —, e um dia voltarei aqui a fim de casar-me com ela e viver feliz para sempre, preferencialmente aqui mesmo nesta Shangri-La tropical — não me passava pela cabeça abandonar o paraíso e sair vagando com a amada pelo mundo afora, certamente não cometeria o mesmo erro de minha mãe.
Memorável aquelas férias... banhos de rio, passeios de bicicleta, comida da vovó, andanças com vovô, encontros com tios e primos, banhos de cachoeira, conversa gostosa no café da tarde, laranjais a perder de vista, enormes armazéns abarrotados de sacas de café, gado pastando na relva, tardes, noites, quintais, pardais...
Décimo segundo dia, décimo terceiro dia... isto nunca vai terminar, isto é para sempre, mas Cronos — filho de Urano, o céu estrelado, e Gaia, a terra —, o deus do tempo, lá do Olimpo não ouviu as minhas rogativas, girando naturalmente os ponteiros do relógio solar até finalmente chegar o vigésimo e último dia, o dia do fim do mundo.
Dezesseis horas do fatídico vigésimo dia; estava prestes a embarcar naquele ônibus sem graça nenhuma rumo a realidade — para alguns codependentes a realidade é uma verdadeira prisão. Sentia uma terrível dificuldade de acenar para todos e dizer adeus — os codependentes costumam não gostar de despedidas —, e então, pouco a pouco, aquela praga motorizada oriunda dos confins do inferno foi deixando para trás a terra do nunca. Podia furar um pneu; podia ocorrer um defeito elétrico; podia fundir o motor, podia, quem sabe, cair uma ponte obstruindo a estrada, forçando um retorno ao meu paraíso codependente, mas nada disso aconteceu, infelizmente, e a viagem seguiu naturalmente o seu curso — alguns codependentes desejam controlar todo o universo a fim de criaram uma realidade paralela nos momentos de adversidades ou não.
Conforme o ônibus circulava e a tarde caia, lágrimas ocultas — alguns codependentes escondem suas emoções — caiam do meu choro secreto e interior, pois meu desejo não revelado era o de jamais abandonar o paraíso — que sofrimento o de Adão e Eva! Resolvi então não dormir, tentando desta forma alongar o máximo possível a volta para a realidade, já sentindo em minha consciência o peso — minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa — por não ter feito uma série quase infinita de exercícios, que a severíssima professora de português certamente iria cobrar na tenebrosa segunda-feira que se aproximava — alguns codependentes são procrastinadores e não gostam das segundas-feiras.
A hora avançou — maldito Cronos — e agora o ônibus trafegava na noite de pesadelo pela estrada desencantada rumo ao sul da minha angústia; queria ficar acordado o tempo todo, na vã tentativa de mentalmente adiar a visão de minha cidade com sua grande indústria e suas inúmeras e fumegantes chaminés soltando a torto e a direito fumaça pelo céu. Depois de algumas horas de viagem, entre uma cochilada e outra, percebia os faróis do ônibus rompendo a escuridão, e via profundamente entristecido inúmeros sombreiros retorcidos nas margens da rodovia — quilômetros e quilômetros de sombreiros. Que árvores medonhas e fantasmagóricas, e a cada uma que passava eu me sentia mais longe das minhas fantasias e mais perto da realidade que eu não queria viver — alguns codependentes vivem atados ao passado. Tal era a intensidade das minhas emoções, que fazia agora um esforço para dormir, apenas para não observar aqueles detestáveis sombreiros passando pela luz para logo se perderem na escuridão da noite — que sejam cortados a machadadas todos os assombrosos sombreiros da terra!
Era uma vez um mês de agosto, não o de César Augusto, o grande imperador romano, mas mês de voltar à realidade numa nefasta segunda-feira, com o caderno escolar repleto de deveres por fazer, a alma atolada até ao pescoço na mais profunda angústia e a consciência tão pesada quanto chumbo.
Somente vim a descobrir minha codependencia e outras dificuldades emocionais vinte e cinco anos depois deste relato, a partir do momento em que conheci e abracei um Programa de 12 Passos.
Com toda a sinceridade que o Quarto Passo sugere — fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos — , até hoje ainda sonho em retornar ao paraíso, a fim de casar-me com a bela princesa na Igreja do alto da colina para, enfim, vivermos felizes para sempre; ela já é uma avó e eu um tio avô, ambos enrugados pela inevitável ação de Cronos, mas por mais estranho que possa parecer, eternamente jovem e sorridente ao meu olhar — amores codependentes não envelhecem — tal como a primeira visão registrada em algum escaninho de minha mente — é o fim.
Volta Redonda, 27 de Maio de 2021.
(*) O sombreiro [Clitoria fairchildiana] é uma árvore nativa da região amazônica.