Nem Todas as Flores São Tóxicas
Naquele fim de tarde dos primeiros dias da primavera, o Viajante Emocional localizou na borda da floresta a sábia Coruja empoleirada num dos galhos de um frondoso ipê rosa, e grande foi o seu contentamento.
— Sábia Coruja, sofro de fobia social, fujo das pessoas tal como o diabo foge da cruz.
— Mas qual a razão disto Viajante Emocional?
— Ah Coruja... creio que tenha convivido com pessoas que de tão tóxicas me intoxicaram também.
— No seu processo de fuga você acaba recluso de forma infeliz no seu próprio mundo emocional?
— Sim Coruja, e neste estado de reclusão eu muitas vezes caio em processos depressivos.
— Viajante... certa vez uma pequenina abelha saiu da colméia para coletar o néctar das flores pela primera vez. No caminho encontrou uma belíssima espatódea (Spatthodea campulata) carregada de inúmeras flores vermelhas com uma abundância de néctar sem fim; imenso foi o contentamento da abelhinha, que sem demora levou para a colmeia todo o néctar que pode, mas sua alegria durou pouco, o néctar era tóxico e aquela toxidade trouxe uma série de distúrbios para toda a colmeia. Muito triste com tudo aquilo, a abelhinha passou a sentir muita vergonha e culpa, caiu em depressão e não mais voltou à natureza com as demais operárias.
— Compreendo perfeitamente a dor da abelhinha sábia Coruja, que coisa mais triste.
— Viajante Emocional, as abelhas são muito solidárias; no terceiro dia, observando aquele comportamento depressivo, as abelhas saíram bem cedo para a floresta e levaram com elas a abelhinha amargurada de coração ferido, e então naquele amoroso e educativo voo coletivo mostraram para ela uma infinidade de flores de muitas variedades de plantas que não apresentavam toxidade nenhuma, e grande foi a paz de espírito da pequenina abelha daí em diante.
— Que coisa mais bela sábia Coruja.
— Viajante Emocional... Nem todas as pessoas são tóxicas!
— Sábia Coruja, creio que trago no meu âmago um pouco desta toxidade que encontrei nos outros, portanto não é justo responsabilizá-los por aquilo que sinto.
— Boa descoberta Viajante Emocional, como comentam os bichos aqui na floresta com muito bom humor: "Um gambá cheira o outro".
— Coruja... percebo agora que usei de minha própria toxidade para intoxicar a mim mesmo, como num doentio processo de autopunição e isolamento com relação aos demais. Congelei ao longo dos anos muita raiva por situações emocionais mal resolvidas, e toda esta raiva congelada intoxicou o meu fígado e envenenou o meu coração.
— Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, "E agora José"?Pretende resolver isto tomando boldo amargo Viajante Emocional?
— Não Coruja, isto não faz mais sentido; continuarei voltando às reuniões de 12 Passos e falarei destemida e honestamente sobre isto no Quarto Passo.
— Viajante, você se recorda daquela frase de William Shakespeare sobre o veneno tão conhecida nas irmandades de 12 Passos?
— Creio que seja: A raiva é um veneno que bebemos esperando que o outro morra! — exclamou de maneira sorridente o Viajante Emocional.
— Continue voltando Viajante Emocional, o segredo está na próxima reunião.
— Gratidão sábia Coruja. Só por hoje continuarei descongelando minha raiva e desintoxicando meu fígado.