O Agricultor, Seu Velho Ego e a Mariola
Ainda não eram cinco horas da manhã, estava escuro ainda, contudo o Agricultor já estava de pé. Tomou o seu café, encheu sua garrafa com água da fonte, pegou um tablete de mariola(*) e caminhou em direção ao seu campo; o período seco estava chegando e era necessário fazer um aceiro ao longo de toda a cerca, a fim de evitar as desastrosas queimadas de inverno na plantação — alguns inconsequentes incendiários faziam das maravilhas que brotam do chão um verdadeiro cemitério de carvão.
O campo ficava do lado leste de sua casa, para onde caminhou com suas velhas botas; chegou lá junto com os primeiros raios do sol da manhã que surgiam na linha do horizonte, vindos de um distante leste onde seus pés jamais pisariam um dia. Pouco tempo depois seu corpo e sua alma já estavam aquecidos com o movimento constante e vigoroso da enxada sobre o africano capim braquiária. Três horas mais tarde, já bastante suado e cansado pelo esforço contínuo, resolveu fazer uma pausa para beber um pouco d'água e comer sua merenda, a mariola.
— Bom dia meu caríssimo amigo!
Ao ouvir a voz tão familiar, o Agricultor já sabia quem o estava cumprimentando no meio daquele nada infestado de capim braquiária e colonião por todos os lados.
— Você por aqui a esta hora meu velho ego, caiu da cama hoje?
— Dispenso seu senso de bom humor Agricultor, vim aqui para observar sua decadência e, quem sabe, reencaminhá-lo para o seu glorioso lugar no mundo.
Comendo sua mariola ao lado de um grande cupinzeiro, o Agricultor não resistiu e soltou uma boa e sonora gargalhada; se passasse alguém por ali naquele instante certamente julgaria que ele estava ficando doido.
— Só por hoje dispenso seus enganosos caminhos de salvação e idealismo vazio e falido; mesmo tropegamente, eu já consigo caminhar com minhas próprias botas.
— Acorda Agricultor, Acorda! Não consegue recordar-se daqueles auspiciosos tempos em que você ficava preocupado com a devastação da floresta amazônica, com a destruição do que resta da mata atlântica, com a poluição geral e o aquecimento global, com a questão da camada de ozônio, o avanço do deserto de Gobi lá na China... — o velho ego do Agricultor falava mais que o burro do filme do Shrek e o Grilo Falante do conto do Pinóquio juntos.
— Por que não te calas velho ego?
— Como calar-me diante de uma situação destas? Reflita no que estou falando Agricultor, é para o seu próprio bem. Vejamos... você pode plantar milhares de árvores apenas com um leve toque sobre o mouse do computador ou a tela do seu celular, sem fazer tanto esforço e transpirar tanto. Tenho notado que você muitas vezes gasta horas do seu tempo cultivando mudas que posteriormente serão plantadas em praças, ruas, avenidas e campos degradados, áridos e públicos, tal como este, e tudo isto de forma anônima, que horror — para o velho ego do Agricultor o anonimato era algo simplesmente insuportável.
O Agricultor estava quase terminando de comer sua mariola, bebeu mais um gole de sua água isenta de cloro, pegando em seguida no surrado cabo de sua enxada a fim de retornar ao seu trabalho — ainda havia muito capim para carpir.
— Velho ego, estou precisando de ajuda com este capim colonião e com aquele capim braquiária ali adiante, cujas raízes são tão resistentes quanto fios de arame; quanto mais eu corto mais ele cresce. Posso contar com você para a empreitada?
— Francamente Agricultor, francamente... Não tenho nenhuma vocação para mãos calejadas, picadas de insetos, velhas botas, chapéu de caipira, cheiro de estrume de gado, capim inculto e roupas sujas de terra — respondeu cheio de 'nove horas' o seu velho ego, dando meia volta e retirando-se para a sombra acolhedora das árvores próximas; os raios do sol começavam a incomodá-lo.
— Quem plantou aquelas belas árvores lá adiante? — perguntou ainda o velho ego para o Agricultor Urbano.
— Foram plantadas por mim.
— Através do seu dedo e de um suave toque sobre o mouse, creio eu. — retrucou o velho ego com ironia.
— Não velho ego, você está redondamente enganado! Através de minhas calejadas mãos e de minha velha enxada.
— Mas quando isto de fato ocorreu, se eu nem mesmo percebi?
— Ocorreu desde que eu deixei a sua deletéria companhia na vã tentativa de salvar a floresta amazônica, a mata atlântica, o avanço do deserto de Gobi... — retrucou o Agricultor já carpindo o velho e bom braquiária que seria utilizado como adubo para as plantas.
Seu velho ego começava a afastar-se, quando ouviu o Agricultor gritando para ele...
—Velho ego, você não gostaria de experimentar um pedaço da minha mariola? Está simplesmente divina, uma coisa verdadeiramente celestial.
— Vá para o inferno Agricultor — respondeu o seu velho ego de semblante fechado.
O Agricultor não se sentiu insultado ou vexado com o impropério de seu velho ego, que na verdade não passava de uma criança imatura e carente que precisava ouvir uns desaforos mansos de vez em quando.
— Não precisa ficar de mal humor meu amigo, talvez você não goste mesmo de mariola. Mas que tal um gole desta água pura da minha garrafa, está uma delícia.
Aquilo foi a gota d'água; o Agricultor ainda ouviu as últimas palavras de seu velho ego antes de desaparecer completamente sob a sombra das árvores frondosas...
— Que coisa mais inglória, inodora, insípida e incolor, prefiro a glória do mundo, a notoriedade e o tilintar suave das taças de vinho nas grandes festividades humanas.
Comendo seu último pedacinho da mariola, o Agricultor não resistiu e soltou a segunda boa e sonora gargalhada; se passasse alguém por ali naquele instante certamente julgaria que ele estava realmente doido.
(*) Mariola: Doce de banana