Meu Avatar no País das Maravilhas
Por tanto medo da realidade, criei um mundo mental e paralelo, um mundo onde poderia ser eternamente feliz, algo parecido com Alice no país das maravilhas. Neste local encantado e perfeito, que fui criando aos poucos — uma verdadeira obra de arte —, idealizei metodicamente, muito antes dos modernos softwares, meu feliz e imaginado Avatar — meu representante legal neste local perfeito, funcional, idealizado e maravilhoso —, aquele que era o inverso de tudo o que eu era, ou melhor, achava que era, no mundo real.
No meu mundo de fantasias meu Avatar era destemido, não levava desaforos para casa, namorava todas as meninas do bairro, tirava excelentes notas nas provas — mesmo não estudando nada —; era o melhor jogador de futebol da rua, dizia sim e não quando necessário, e, sobretudo, não sentia culpa, vergonha, medo das pessoas, angústia, solidão, ressentimentos... para ser absolutamente sincero: Não sentia absolutamente nada o meu mental Avatar — não existem vagas para as emoções nos mundos mentais.
Se no mundo real eu me sentia como um peixe fora d'água, no meu mundo de fantasias, meu Avatar era como um grande peixe, que nadava diariamente com leveza e total liberdade pelo imenso oceano — só de escrever sinto inveja dele. Que grande felicidade a do meu Avatar em seu mundo de fantasias — ou seria meu e não dele este local idealizado e perfeito? —, enquanto eu me sentia muito infeliz e inadequado no mundo real. Quanto mais dissabores na realidade nua e crua, mais eu ampliava o mundo da fantasia, que crescia a olhos vistos — mais que o desmatamento da floresta amazônica.
Quando a solidão batia à minha porta, grilava um pouco de terras do mundo real e expandia as fronteiras do mundo das fantasias; quando sentia-me frustrado por não conseguir namorar as meninas tão bonitas da escola — eu nunca sabia o que dizer para elas, nunca —, acionava o meu Avatar para resolver aquelas questões tão delicadas; quando recebia um não de alguém — não admitia ser contrariado por ninguém —, fazia umas economias e comprava mais alguns alqueires de terras no mundo mental; quando a angústia resolvia me visitar — e ela sempre me visitava —, expandia ainda mais o mundo das ilusões, dando cada vez mais poder para o Avatar, que agora, de tão vastos os seus domínios, já se parecia com aqueles antigos senhores feudais da idade média, transformando-se em senhor quase absoluto de minha existência, passando a controlar praticamente tudo lá do mundo da fantasia, em detrimento da minha vida no mundo real.
No mundo do meu Avatar tudo a tempo e a hora, e a felicidade sempre ao alcance das suas mãos; para ele nenhum dissabor, nenhuma discussão, nenhum problema; nenhuma conta para pagar, nenhuma horrorosa análise sintática, nenhum dever de casa nos finais de semana; nenhuma segunda-feira cheia de deveres, afazeres e responsabilidades... para ele, todos os dias eram eternos domingos de paz, prazer, delícias e ociosidade.
Depois de alguns anos, parte de mim vivia no mundo real, e a outra no mundo da fantasia; parte de mim era bastante infeliz, e a outra achava que era feliz no mundo encantado; minha maluquice chegou a tal ponto — o verdadeiro maluco beleza do Raul Seixas —, que em determinado dia eu já não sabia mais se o real era eu aqui no mundo da realidade, ou se o meu Avatar no mundo da fantasia.
Finalmente, trinta anos depois, eu comecei a perceber um certo desgaste mental por manter aquele mundo de fantasias — já estava maior que o estado de Minas Gerais, quase um estado, um estado de loucura —, onde o meu Avatar vivia totalmente alienado com sua pseudo liberdade e tranquilidade. Como dizem os americanos do norte, "There is no free lunch"; eu estava exausto e gastando muita energia para manter todas aquelas fantasias, e o pior: Quanto mais vivo era o meu Avatar no mundo das fantasias e mordomias mentais, mais morria eu mergulhado na angústia e melancolia no mundo real.
Resolvi então acabar com tudo aquilo e passar a viver integralmente no mundo real, como todos os seres viventes. Tudo seria muito simples: Bastaria parar de fornecer o combustível para a alimentação do mundo da fantasia, e com o tempo, tudo aquilo entraria em decadência — como a grande União Soviética —, até o fim total, com a consequente morte do meu querido Avatar e todas as paisagens ilusórias que lá existiam. Fácil, fácil.
Mas, como diz o adágio popular: "O feitiço virou contra o feiticeiro"; quando meu Avatar soube de tudo aquilo — precisei mesmo chamá-lo para uma conversa —, simplesmente riu, francamente falando, chegou mesmo a rolar no chão de tanto que gargalhava, dizendo para mim com a cara mais lavada do mundo, uma verdadeira cara de pau:
— Anônimo cidadão, será que você ainda não percebeu que quem controla e governa o seu mundo mental e mesmo o seu mundo real sou eu. "Papo reto amigo, papo dez", sou eu o senhor absoluto de seu mundo mental, e você não tem nenhuma chance de me ignorar, pois agora sou parte de sua própria natureza. Caro amigo, você nutriu-me durante muitos e muitos anos, e agora não passa de um fantoche, ou ainda, um escravo em minhas mãos. Sou o seu gole amigo, sou o seu pó de vinte, sou a sua nicotina; sou a sua droga genérica que você não consegue mais largar, sou todos os seus anseios de felicidade, sou aquele que tapa os imensos vazios de sua existência; o lugar idealizado onde vivo, é a sua própria Pátria, onde habitam todos os seus sonhos de ventura e alegria, local onde as suas terríveis frustrações emocionais não entram jamais.
Estas palavrinhas tão duras, sinceras e diretas, eu ouvi de meu Avatar, e desde então venho tentando, dia a dia reconquistar o que me pertence — meus domínios mentais —, a fim de erradicar de vez o mundo de fantasias que criei durante três décadas. Devo confessar que não tem sido fácil — nada foi fácil para mim —, pois muitas vezes não sei se quem de fato controla a minha vida sou mesmo eu, ou ainda, o meu querido Avatar, que ainda vive e resiste no meu país das maravilhas.