Suportar

É um engano supor que a dor é a maior que já experimentamos, sempre há e haverá uma vicissitude mais dolorosa e intensa, faz parte de nossa evolução. Portanto, suporte; apenas suporte... O amor, o colocar-se no lugar do outro, a empatia. Encontrar alguém que nos alivia e caminha junto, divide o fardo nas provas dessa vida, é uma dádiva divina, uma oportunidade ímpar.

Quando te conheci ficava a te olhar, quando nos despedíamos sempre observava você indo embora: calça de veludo azul, camisa branca de xadrez muito azul e cinza, suéter marrom avermelhado, cheiro de almíscar misturado com o aroma exalado pelos cedros da praça, com seus cabelos a reluzir de tão negros, pareciam azulados.

E na nossa última despedida, você de shorts jeans , camiseta vermelha, sandálias de couro, agora cabelos grisalhos e calvo, eu sem olfato não lembro os aromas, você disse na porta entreaberta "eu vou, mas volto, fique bem, te amo". E a porta se fechou...

Passaram-se quinze dias na UTI, onze na enfermaria, mensagens a toda hora, com muitos "eu te amo", "não me deixe", "lute", "volte". Até que silenciou; quatro dias entubado, fui buscar seus pertences, quase não suportei ao pegar sua aliança, sua corrente com o crucifixo que te dei nas nossas bodas de prata e que nunca tirou.

Tínhamos a intuição de que a entubação seria a nossa separação. Quanta angústia, sentada ao lado do telefone aguardando o telefonema do hospital, relatório diário por quinze dias, até a solicitação de que fosse com os documentos ao hospital; sabia, ali, o que tinha acontecido.

Sempre conversamos que gostaríamos que nos fosse permitido partir juntos, como no filme "O homem bicentenário", mas não aconteceu. Não sei como suportei, reconhecer teu corpo no saco preto, mãos postas, me despedir... terminava nossa história de amor.

Velório, martírio a suportar, ver você ali no caixão com o terço de sua mãe em suas mãos, nossos filhos e netos inconsoláveis, assim como eu. Rezei e continuo a rezar todos os dias para que esteja amparado e que eu consiga suportar sua falta física.

Te encontro em meus pensamentos, sonhos, nos nossos filhos e netos e sei que vale a pena suportar. A vida se redesenha, reaprendo a viver, poucos enxergam a dor que suporto por ter amado muito, a vida continua e continua além dessa vida.

Bia Viotto Ferraz
Enviado por Bia Viotto Ferraz em 29/09/2022
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