O HERÓI DO LOTAÇÃO

Viam-se nele cabeleira e bigode cuidadosamente aparados. Usava roupas modestas, mas engomadas e limpas. Tinha traços bem previsíveis, de pedreiro evangélico pai de cinco filhos adolescentes quase da mesma idade, e parecia saber valer-se da estampa suave de cidadão "temente a deus". No bom sentido, é claro, e de maneira bastante honrosa, convenhamos.

Narrou aos "senhores passageiros" uma história de muito sofrimento em razão das drogas: Fora viciado em maconha, cocaína, cola de sapateiro, crack, desinfetante, cloro e tantas outras porcarias, indo ao fundo-do-poço por causa disso. Ainda na meia-idade, ostentava uma boa forma surpreendente para quem "teve a juventude arruinada pelo vício", mas a oratória convencia.

Suas quedas e soerguimentos, o drama em família, as prisões e a companhia da morte eram desfiados com voz levemente anasalada. Típica de cristãos fervorosos habituados a pregar nos coretos, avisando que "o fim está próximo e ai daquele que não se arrepender dos pecados, aceitando a Cristo". No entanto, sua pregação naquele momento visava outro desfecho, e devo dizer: Impactante para todos os que ouviam tal discurso encorpado, ao melhor estilo Sérgio Chapellen sensibilizando o telespectador a ter mais carinho pelas baleias, os micos-leões e os paraísos ecológicos descobertos pela equipe do Globo Repórter.

Ele tinha para oferecer, um produto inédito. Sendo agora um trabalhador, um homem regenerado pela "graça divina", conquistara o seu espaço na sociedade à qual oferecia, naquele instante, o seu grande lançamento. Quem o comprasse, adquiriria o testemunho vivo de sua saga, sua via-sacra e a volta por cima, o que o tornava um verdadeiro herói.

Já lamentava por não dispor em espécie, do possível valor do seu livro ou cd, quiçá dvd, o que me privaria de muitas emoções. Por não andar com dinheiro, perderia a chance de conhecer a fundo aquela história de luta entre o bem e o mal, com profundas lições de coragem, esperança, fé, otimismo e resignação.

No fim das contas, não foi tão caro. Por sua vez, o lançamento nem era tão espetacular. Meio decepcionado, mas ainda simpático à desenvoltura do homem, lancei mão das moedas que jaziam no bolso e as investi numa de suas cocadas caseiras.

Depois daquele dia, foram muitas as vezes em que vi o nosso herói repetir seu discurso nos ônibus que circulam pelos distritos da cidade de Magé, onde moro. Confesso que passei a admirá-lo, por sua persistência. Mais ainda, por ele nunca ter dado a velha voz de assalto que ouço desde menino, de certos vendedores e pedintes, quando dizem que o que fazem "é melhor do que roubar".

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 27/11/2007
Reeditado em 17/01/2011
Código do texto: T754824
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