A profissão de carpideira. Empresa aluga mulheres para encenarem choro em velórios.
A profissão de carpideira. Empresa aluga mulheres para encenarem choro em velórios.
De repende lembrei-me do Jaime Barbeiro lá de Itapeva. Éramos amigos. Ele um sujeito avantajado, extrovertido, gostava de embebedar-se e, quando isso acontecia era bão num ficar muito perto dele, ficava agressivo e encrencava com todo mundo. Encrenqueiro que só ele. E, ainda, bão de briga. Num sei a razão, mas comigo ele nunca se ‘estrilou’.
Quando tinha velório era a nossa alegria. Naquela época íamos aos velórios e aí claro NE, o resto da ‘patota’ ia tamém uai. Éramos mais ou menos de 10 a 15 rapazolas, gente boa, mas totalmente inconsequentes. Gostávamos de fazer ‘arte’, ‘bagunça sadia’ para provocar risos e descontração. Os velórios eram os eventos preferíveis apesar da família e amigos próximos estarem condoídos pelo passamento de alguém.
Familiares choramingando pela casa, chorando o defunto e nós lá fora em volta de uma fogueira (isto era fundamental) não podia faltar a fogueira a noite e madrugada adentro para que as pessoas ficassem em volta dela se ‘esquentano’, contanu as novidades, em especial as mentiras atuais.
Nós, o Jaime, eu e outros éramos figuras presentes em todos os velórios, fosse na cidade ou na roça. Até que começasse o terço lá estávamos nós todos condoídos, chorosos, a tristeza estampada nas faces. Coitado do defunto.
Quando, por volta de 10/11 hs da noite era a hora do terço, lá íamos, o Jaime e eu e os demais na sala em volta do caixão para começar o terço – puxar o terço.
Rapais, e num é que nóis rezava direitinho e todos os demais acompanhando. Mas claro, um não podia oiá na cara do outro porque se isso acontecesse, ‘adeus terço’, era só gargaiada. Quantos micos pagamos, mas ficávamos bem na fita porque éramos convidados por membros da família para os velórios. Velórios sem a presença da turma do Jaime Barbeiro, não tinha ‘graça’, e o defunto com certeza num ia pro céu. Bão, era o que diziam.
Encerrada a reza, de volta para a fogueira, e na época era comum servir quentão, biscoitão, enfim salgados, café, etc. O quentão ajudava a soltar os ‘diabinhos’ impacientes. Dali a pouco lá do canto da roda se ouvia o zuar de um pum, outro do lado de cá não deixava barato e lá dava o troco, outro pum respondia. E assim a noite toda de pum em pum o dia amanhecia.
Mas o bão memo eram as piadas, os causos, as mentiras, de modo que a tristeza acabava e era só risada no alto da madrugada. O triste era que o defunto acabava ficando sozinho no centro da sala porque os familiares não aguentava a alegria da fogueira e lá passvam os últimos momentos ‘bebendo’ o morto. Café, quentão, e guloseimas à vontade.
Sabe, lembrando do Jaime Barbeiro lembrei-se deste episódio, me deu saudade.
E aproveitando este gancho. Lembrei das ‘carpideiras’.
Existem muitas profissões exóticos e serviços inesperados espalhados pelas épocas e pelo mundo – poucos, porém, são tão estranhos, até mesmo mórbidos, e ao mesmo tempo tão ancestrais quanto o trabalho das carpideiras. Ofício exercido há mais de 4 mil anos em diversas culturas do mundo, trata-se de uma carreira majoritariamente feminina, cuja prática consiste em ser contratada para chorar em velórios e enterros alheios – sem qualquer ligação afetiva com a pessoa morta em questão, a carpideira vai às cerimônias para verter suas lágrimas em tributo.
A profissão de carpideira é tão antiga que é mencionada em mais de uma passagem da Bíblia – o propósito do serviço é, claro, amplificar a emoção dos velórios e também oferecer mais popularidade ao defunto. Apesar de se tratar de serviço ameaçado de extinção, curiosamente tal trabalho ainda existe em diversas partes do planeta hoje.
Na China, por exemplo, a prática não só prossegue como em muitos casos é tornada em verdadeira performance catártica: Hu Xinglian, profissionalmente conhecida como “Líbelula”, tornou-se uma espécie de estrela no país, e costuma cantar, urrar e se jogar ao chão durante os cerimoniais.
Em pequenos vilarejos italianos ou gregos as mulheres mais velhas também são contratadas para chorar e cantar em velórios – e muitas vezes os cantos são improvisados na hora, relatando aspectos da vida do falecido ou falecida.
Na Inglaterra do passado o serviço dos “mudos” era popular entre as classes mais abastadas – e consistia não em mulheres para chorar, mas homens que acompanhavam as famílias das casas aos cemitérios, em evidente silêncio. Hoje, no país, ainda há uma empresa que oferece a presença de atores para ampliar o “público” de um enterro.
O trabalho das carpideiras ainda existe também no Brasil, em especial no interior e nas zonas rurais do país. A mais famosa carpideira brasileira é provavelmente Itha Rocha, que chorou no funeral de personalidades como Ayrton Senna, Tancredo Neves, Mário Covas e Clodovil, entre muitas outras – além de carpideira, Rocha é também conhecida como “Madrinha dos Garis” no carnaval, e costuma desfilar em diversas escolas de samba – quando também costuma chorar, mas nesse caso por emoções diferentes.
Crença na República Democrática do Congo diz que espírito fica bravo caso ninguém chore em enterro.
Carpideiras são promissoras no Congo, devido à crença tradicional do país. Um congolês resolveu acabar com os problemas dos velórios silenciosos em seu país e abriu uma empresa para oferecer o serviço de carpideira – mulheres que são pagas para chorarem em enterros – na República Democrática do Congo. Gilbert Kubali teve a ideia depois de perceber que na capital do país o negócio já é bem estabelecido e lucrativo. Segundo o periódico inglês, The Economist Kubali enxergou uma oportunidade de monopolizar o negócio na cidade de Goma, leste do Congo , com 1 milhão de habitantes. O empreendedor espera conseguir cada vez mais clientes apostando nas habilidades de interpretação de suas contratadas e nas propagandas feitas por Kubali na cidade.
Por mais peculiar que pareça, a prática é promissora no país. A crença tradicional é de que o morto continua vivo por algum tempo após o seu coração parar de bater e que consegue “assistir” ao seu velório como se fosse a um filme. “Se você não chora, o morto ficará furioso”, explicou a carpideira Deborah Nzigire, de 65 anos, ao jornal. A população local acredita que os ancestrais furiosos podem voltar e perturbar a vida dos seus descendentes.
Além disso, os congoleses consideram vergonhoso e imprudente que um membro da família não chore no velório, atitude que pode ser interpretada como um sinal de que a pessoa pode ser responsável pela morte por meio de bruxaria. As carpideiras teriam, assim, a função de provocar as lágrimas dos familiares da pessoa morta.
Porém, engana-se quem pensa que é um serviço barato. O ‘aluguel’ de uma mulher por uma semana de luto custa em torno de US$ 1.500 (cerca de R$ 5.600), já que contabiliza, além os custos do empresário, o reembolso das carpideiras pelos seus gastos com alimentação, bebida e transporte.
De acordo com Deborah, o alto valor cobrado é necessário já que os problemas de pobreza são os que mais assombram a população congolesa e esse é o meio que as carpideiras encontraram para garantir alguma renda. “A todo o momento surge algum problema. Nossa mente vive ocupada e estamos o tempo todo nos perguntando onde conseguir algum dinheiro. Isto entristece e você chora. Estamos sempre prontas para chorar”, disse Deborah ao The Economist .
A entrevista de emprego feita por Kubali é baseada em uma encenação feita pelas mulheres e, caso sejam convincentes, são recrutadas. O empresário ainda afirmou que, para aprimorar o trabalho das carpideiras, pretende enviar um profissional da capital do Congo , Kinshasa, para treinar suas dez funcionárias.
E para finalizar nada melhor que o texto –crônica, de João Pestana: O preço da lágrima, publicado em 29/09/2018.
O preço da lágrima
“Evito cemitérios. Não chega a ser uma coimetrofobia como a de Jorge Amado, que nem depois de morto entrou em um deles, já que pediu para ser cremado. Mas há uma certa repulsa pelos chamados campos santos e compromissos fúnebres.
No campo da esperança é ainda pior, porque é preciso se desviar das covas que são marcadas apenas por uma plaquinha. Não fica bem pisotear aquele chão, mesmo sabendo quer teve muito osso tirado dali, numa transação das mais tenebrosas.
Só que não há como fugir sempre. E foi assim que eu descobri que não há mais lágrimas nos velórios.
Faço aqui uma ressalva: não foram enterros de crianças ou jovens, quando o luto se mistura à revolta; eram todas pessoas mais velhas, mas dignos do respeito que normalmente é traduzido pelo choro sentido das pessoas próximas.
Ao contrário, deu para observar que as pessoas se cumprimentavam com certa alegria e efusividade, mesmo naquele ambiente contrito. No caso daqueles que não se viam há mais tempo havia abraços e conversas animadas. Era quase uma festa para colocar assuntos em dia.
De certo modo é compreensível. As pessoas têm o direito de celebrar a vida, ainda mais diante de um finado que, por mais próximo e querido que seja, passou dessa para uma melhor – isso, conforme o eufemismo que, como carece de comprovação, me faz preferir o pior daqui mesmo.
Mas senti falta das lágrimas. Havia rostos tristes, mas secos, áridos. Havia alguma pungência, mas ainda acredito que o desespero faz parte do momento solene final, talvez por lembrar de uma passagem da minha tenra puberdade.
No interior de Pernambuco, fui levado ao velório de alguém importante. O caixão com o corpo foi deixado no centro da sala cheia de gente que olhava respeitosamente, enquanto três senhorinhas vestidas de preto choravam copiosamente – chegavam a soluçar.
Assim como o riso, o choro é contagioso. E todas as mulheres presentes vertiam lágrimas; os homens, não, porque naquele tempo homem não chorava, ainda mais no agreste pernambucano.
As três carpideiras faziam um trabalho notável; não sei se chegaram a conhecer o homem estirado, mas se comportavam como inconsoláveis viúvas, facilitando a vida de quem queria mostrar algum sentimento.
É uma profissão antiga, vem de antes de Cristo; há registros de profissionais do luto em Tebas (Egito), são personagens de Samuel e Jeremias, no Novo Testamento, e chegaram ao Brasil com os portugueses que, sabemos, adoram um vestidinho preto e uma canção triste.
Eram presenças do tempo em que o velório durava toda a noite, num rito que durava até a hora do enterro. É uma profissão em extinção. Hoje as carpideiras resistem apenas como personagens de teatro e cordel do que na vida real.
“Toda noite de lua cheia/ Corria na cidadela/ Que a coisa era muito feia/ Quem via era presa dela/Nunca dei pelo assunto/ E quem chora por defunto/ É carpideira banguela”, narra Hélio Pequeno, no Cordel Assombrado.
Talvez a vida esteja tão dura que ninguém mais quer mais pagar por lágrimas.
Tá aí, O Jaime Barbeiro fazia isso de graça, bastava um quentão, mas fazia o contrário, levava alegria nos velórios. Saudade Jaime.
Guaxupé, 09/05/22.
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