GUARANÁ QUENTE
Guaraná Quente
Meu pai chegou, de tardinha, trazendo uma garrafa de guaraná alterosa e colocou-a em cima do guarda-comida lá em nossa pequena casinha no beco do canudo. Eu me animei todo, mas ele disse: - O guaraná é para amanhã, para levar para a festa de conceição do Pará. A garrafa ficou ali em cima do armário, pois não tínhamos geladeira naquela época. Então fiquei olhando o guaraná e imaginando saboreá-lo. Nos meus tempos de menino, tomar refrigerante era algo raro de acontecer.
E a rotina do dia oito de dezembro, dia da festa no santuário de Nossa Senhora da Conceição, na cidade vizinha de Conceição do Pará, todo ano se repetia.
Levantávamos cedo numa animação só! Vestíamos nossa roupinha de missa, abríamos o cofrinho com as moedas juntadas durante todo o ano para serem gastas na festa e estávamos prontos para a grande aventura.
Minha mãe preparava uns sanduiches de carne com molho de cebola para levar, lá era tudo muito caro, então, levávamos nosso próprio lanche, guardando o pouco dinheiro para comprar algumas coisinhas de lembrança.
Íamos para a praça da rodoviária, e ficávamos esperando o ônibus “encher de gente”, e nos conduzir até o local dos festejos. Não era uma espera ansiosa, pois tudo era diversão.
Saíamos pela estrada de chão, com chuva ou poeira, e ver a paisagem com a cabeça para fora da janela do ônibus era uma diversão a mais. Que alegria! Mamãe fechava os olhos quando passávamos pela pontinha da usina, por causa de um trauma sofrido, ela tinha medo de ver a água correndo naquela pequena valeta.
Mamãe sempre nos contava histórias acontecidas por ali, lembrando sua meninice... como eu faço agora nesta roda das lembranças, que assim como aquelas rodas da usina, nunca param de girar.
Chegávamos ao local da festa, mas mamãe logo ditava as regras: primeiro pegar a fila para entrar na igreja, beijar a imagem da santa, dar esmola, depois assistir à missa e só então andar pelas barracas. Ficávamos desanimados porque queríamos sair andando, mas tínhamos que obedecer.
E assim tudo acontecia. Depois das funções religiosas, saíamos serpenteando pela multidão encantados com tudo.
Não podia faltar o retrato em negativo, que só poderia ser visualizado num pequeno monóculo, a foto levava um bom tempo para ser revelada, tirada de manhã e entregue à tarde. Eu, certa vez, tirei uma foto vestido de cowboy montado num pônei.
Papai comprava alguns brinquedinhos para a gente, coisa barata. Eu sempre pedia um aviãozinho.
Chupávamos um ou outro picolé.
Mamãe se demorava um pouco nas barracas e ficávamos nervosos, a perdíamos de vista e tínhamos que voltar. Ela parava muito para olhar mercadorias e nós queríamos movimento. Então a censurávamos. Que bobagem! Para que pressa? Não eram justas nossas reprimendas, pois ela também tinha o direito de ver as coisas e fazer suas compras. Hoje vejo como a pressa era uma besteira. Se soubesse que passaria tão rápido não teria pressa alguma. Olharíamos tudo devagar e saboreando bastante o clima agradável daquelas festas. Mamãe, nas paradas, acabava comprando somente utensílios para a casa e coisinhas para nós, nunca nada para ela.
Depois, íamos a um lugar mais reservado, no meio do mato, saborear os sanduiches e tomar o almejado guaraná que continuava quente, mas a gente nem ligava. Tudo tinha sabor de encontro, de festa e vida eterna. Da efemeridade nada sabíamos.
Dificuldade de água e banheiro, aperto nos corredores, roubos, vendedores trapaceiros, tudo isso fazia parte da grande aventura.
Então, papai falava, já está bom, vamos embora. Sempre na hora do regresso o velho gostava de comprar abacaxi para trazer. E o cheiro dessa fruta, sempre desperta em mim o sabor delicioso dessas manhãs de oito de dezembro. Falou em abacaxi me lembro da festa.
Esperávamos o ônibus encher novamente e voltávamos, enfrentando o engarrafamento da estrada, que também não era estressante. Naquela época festa era festa de verdade, do começo ao fim.
Era tudo gostoso, era tudo divertido, não tinha um resquício sequer de tristeza.
Mas veio a mão do tempo e fez o que ela sempre faz, se apodera dos melhores pedaços de vida e os esmaga um a um.
Se fechar os olhos e deixar a imaginação voar posso ouvir ainda o sino chamando para a missa, ver a fila que serpenteava em volta da igreja, o zumzumzum das rezas, o barulho das moedas caindo no cofre das esmolas, as músicas em homenagem a Nossa Senhora, os cheiros gostosos vindos das barracas de comidas, gritos dos vendedores abordando os clientes, as músicas nas barracas de fita cassete, posso me sentir esbarrando nas pessoas nos corredores apertados... Enfim, posso sentir todos os sons e sabores daquela época tão feliz!
E tudo passou tão rápido, parece que foi ontem mesmo. Se pudesse entraria numa máquina do tempo e, todo dia 08 de dezembro, voltaria a ser de novo aquele menino, tê-los de novo aqui e viver aqueles momentos que à época eram tão comuns e agora, no espelho colorido das lembranças, são tão especiais. E essa frase continua aqui sempre que a lembrança vem: tudo passou tão depressa!
Quero de novo o sabor de vida que existia dentro daquela garrafa de guaraná, quente e delicioso!