Echevarría e os usos da penumbra: ausência que ilumina os dias


Fernando Echevarría (1929-2021): morreu o mais filosófico dos poetas  portugueses | Livros | PÚBLICO
'Qualquer coisa de paz', Fernando Echevarría 

Por Leont Etiel

De repente a leve brisa deu lugar a fortes e insistentes pancadas de vento. As árvores contorciam-se, uma solitária gaivota voava em círculos e a brandura do crepúsculo revestia-se de tonalidades diferentes como a anunciar que uma noite diferente estava por chegar.
Sentado à varanda da quinta familiar, o observador fitava esse cenário a olhar com especial atenção o baloiço das árvores, concluindo que havia algo a inferir no movimento das suas folhas, assim como uma mensagem a ser captada da forma solitária e melancólica como a gaivota sobrevoava as árvores de média altura. Ao mesmo tempo, o observador passou a sentir o soar das palavras do talvez mais filosófico dos poetas lusitanos. Fernando Echevarría saiba dizer as coisas com a estética do saber sábio:

Os vivos ouvem poucamente. As plantas,
como o elemento aquático domina,
são dadas à conversa. A menor brisa abala
a urna de concórdia estremecida
que, assim, sensível, se derrama
e é solidão solícita.
Os vivos não ouvem nada.
Mas, havendo acedido a essa malícia
de experiência cândida,
os mortos deixam que o ouvido siga
o fluvial diálogo das plantas
umas com outras e todas com a brisa.
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas,
as plantas se sentem mais sozinhas,
os mortos brincam à imitação das águas
inventando palavras de consonâncias líquidas.
E esse amoroso cuidado de palavras
a urna de concórdia vegetal espevita
até que, a horas altas,
a noite, os mortos e as plantas
caiam no sono duma luz solícita.
 
Vão-se os dias, mas o tempo vive em que fica sem ele, pois já passado, contudo continuando presente, posto que na memória se encontra. A temporalidade solitária da gaivota a voar em círculo sobre as árvores de meia altura. Observada de uma varanda num crepúsculo de Primavera. Echevarría se foi embora, interpreta o observador, dizendo da permanência do tempo. O tempo vive, quando os seres humanos, nele, se esquecem de si mesmos, ficando, embora, a contemplar o estreme reduto de estar sendo. O tempo vive a refrescar a sede dos entes e do vento, quando a estrutura estremece e dura o obscuro que, desde dentro, irrompe. E fica com eco espantando o seu estrondo de silêncio.
A gaivota distancia-se do campo de visão do observador. Desaparece. Mensagem transmitida. Anoiteceu. Echevarría, em pessoa, não mais está. É como se, a partir de agora, do que ele disse e escreveu, se alimentasse uma garça que tem o sonho de abraçar o céu sem fim, o mar, a terra inteira. Mas ela é apenas uma garça na areia voando dentro de si própria. Usos da penumbra: usada para voar em direção a lugares recônditos.
Lugares de qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente, uma ausência de si, quase lunar, que ilumina o peso. E a corrente de estar por dentro do peso a gravitar.
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Garça Perdida - Dulce Pontes: https://youtu.be/W2GWHaMe8j8