OS SIGNOS DA MINHA INFÂNCIA

Hoje perguntei as pessoas, qual ou quais objetos, marcaram as suas infâncias. A motivação da pergunta é o fato de ter reconhecido essa semana dois objetos que me fascinavam na infância, sendo que nenhum dos dois são de fato infantis. Ao trilhar os caminhos da lembrança pude reavivar algumas emoções que estes signos guardavam.

Bom, esta máquina de escrever da foto foi o meu “brinquedo” favorito. Sim, esta máquina mesmo. Em suas teclas estão guardadas as digitais daquele guri que não sabia escrever, mas gostava de digitar o próprio nome que aprendeu antes do alfabeto, muito embora sempre escutasse o retruco do pai “não bate no rolo sem papel”.

Agora percebo a inestimável lição que meu pai me ensinava mesmo não sendo esta sua intenção. Ao zelar pela integridade da máquina de escrever, meu pai me ensinava que o papel é o que torna perene e palpável desde o mais belo poema até as singelas letras do nome recém aprendido.

Considero a máquina de escrever o signo da minha vida, pois desde os 14 anos perambulo num mundo onde escrever faz-se vício e faz-se profissão. Compor canções, escrever poemas, advogar. De alguma forma escrever precisa fazer parte do meu dia a dia. Os longos períodos que passei sem escrever tinham um gosto de angústia que não morre e que não dorme.

Este signo deixou suas consequências. O fascínio fez com que eu me alfabetizasse através das letras da máquina de escrever. Quando alfabetizado no colégio, por mais que conhecesse tanto a letra de forma quanto letra de mão, escrever com as letras através do lápis parecia difícil. Minha caligrafia até hoje é péssima, embora todos os cadernos de caligrafia que minha mãe me fez encher, no entanto quando escrevia com letra de mão fazia garranchos que mais lembravam códigos criptográficos, visto que só eu e, às vezes, minha mãe entendíamos a minha letra.

Há questão de uns anos pra cá comecei a escrever com letra de forma, e minha letra agora está bem razoável. Penso que se em vez de minha mãe ter feito eu encher um caderno com letras de mão, tivesse feito eu praticar a letra de forma, eu não tivesse vergonha de escrever. Se bem que, a vergonha de escrever por causa da feiura da letra tenha feito eu ter que desenvolver uma boa memória.

Agora, o segundo signo é uma enciclopédia, datada de outubro de 1980. Quando eu nasci ela já estava na casa. Essa memória não a tenho muito viva, mas enxergo embaçado quando perguntei pra mãe o que eram aqueles livros vermelhos e ela me respondeu se tratar de uma enciclopédia.

Enciclopédia. Disso eu lembro. A palavra enciclopédia estalou em meus ouvidos. Pra uma criança que ainda tropicava nas sílabas mais difíceis da língua portuguesa a palavra enciclopédia causa espanto. Uma palavra difícil de falar e que por seu som nos diz que não pode se tratar de algo sem importância.

Enciclopédia foi uma daquelas palavras desafio que todos costumamos ter na infância. Sempre há uma palavra que a criança tem grande dificuldade pra falar e que se desafia, ou é desafiada, normalmente por algum tio, a falar da forma correta. Uma de minhas sobrinhas não conseguia falar “Mônica”, sempre falava “Môncana”. E de fato, proparoxítonas são difícil de serem ditas corretamente por crianças. Ainda com relação a minha sobrinha e sua saga para consertar a “Môncana”, um dia ela chega feliz na sala dizendo que já conseguia dizer “Mônica”. Preciso confessar que não tenho certeza desta última lembrança, talvez este quadro da minha memória tenha sido pintado com as tintas da imaginação. De qualquer forma, minha irmã talvez possa confirmar quando ler se de fato ocorreu ou se inventei.

Além de pronunciar a palavra enciclopédia, eu via fascinado aqueles quatro tomos vermelhos irem de mão em mão dentro de casa. Algumas vezes eles estavam nas mãos de meus irmãos para algum trabalho da escola, nas mãos do meu pai para confirmar a capital de algum país que a gente perguntava e ele não soubesse de memória, nas mãos da minha mãe me ensinando geografia. Trazia tão presente a imagem das bandeiras que errei a página onde elas estavam localizadas no tomo um por pouca coisa. Imaginava que fosse a 99-100, mas eram duas páginas antes.

Lembro que aos onze anos carregava os quatro volumes na minha mochila, sem me importar com o peso. De alguma forma, pra mim, com aqueles quatro tomos vermelhos eu tinha todas as respostas do mundo. E esse sentimento foi confirmado na vez em que uma professora falando de fome e doença citou uma imagem parecida com a do menino africano com fome. Não é que nesse dia estava com os quatro tomos na mochila?! Foi a única vez que minha timidez me permitiu interagir com a aula trazendo algo relacionado a matéria. Ter a imagem que a professora descrevia em aula era como se eu soubesse tanto quanto a professora, afinal se eu reconhecia a imagem, de alguma forma eu a conhecia também.

Um parágrafo especial para a imagem do menino africano no capítulo onde explica a fome. Talvez a imagem mereça mais do que um parágrafo, mas sim um livro, pois esta imagem é uma das lembranças mais antigas que eu carrego. Antes do alfabeto, da matemática, da geografia. Antes de muita coisa em minha vida essa imagem apareceu, nasceu, morreu, reviveu, se eternizou... Ainda não há a verbo para essa imagem em minha vida. Se um dia por fatalidade perdesse todas as lembranças, não tenho dúvida que esta permaneceria viva. Essa imagem inutilizou a chantagem emocional que minha tentava fazer comigo infância. Ela sempre tentava me convencer a comer dizendo “Que feio, com tanta criança com fome na África!”. Eu sempre respondia da mesma forma: “Então dá a comida pra elas!”.

A praticidade e a inocência infantil. Sempre que escutava minha mãe falar da fome das crianças na África, eu pensava “Pois então, se eu não quero comer e há crianças passando fome, por que insistir em me fazer comer em vez de alimentar essas crianças famintas?”. Eu lembro que era o que eu pensava quando escutava minha mãe, mas dizia “Então dá a comida pra elas!”. Meu poder de síntese não era muito bom.

Foi com essa imagem que eu aprendi o que era a fome na primeira vez que perguntei a minha mãe quem eram as crianças que passavam fome da África de quem ela falava. Do alto dos meus, sei lá, quatro, cinco anos, aquela imagem era algo misterioso pra mim. Eu vi a dor daquele menino, eu vi a morte deixando suas digitais na fisionomia do menino. Eu era um guri, como entender uma imagem que dói? Eu não sabia o que era fome, eu não sabia o que era a África, eu não conhecia aquele menino. Mas eu tinha vontade chorar...

Neste dia eu conheci a poesia! (11/09/2013 01:59)