O processo criativo da canção e os vilões da criatividade
Fiz uma oficina sobre o processo criativo da canção, ministrada por dois ícones da música regional gaúcha, Luiz Carlos Borges e Vinícius Brum. Batizada de Roda de Prosa, a oficina se desenvolveu em três encontros, com trocas de experiência e muitas histórias sobre canções.
Uma das propostas para os encontros era a criação de uma canção coletiva composta pelos participantes com a supervisão dos ministrantes da oficina. Após uma semana do primeiro encontro, acabei sendo o primeiro a arriscar alguns versos, o que me rendeu a braçadeira de capitão no time da letra da canção.
Depois de esboçar uma letra e achar que o trabalho coletivo estava sendo muito solitário, resolvi distribuir o jogo, chamar os outros colegas a participarem da letra. Escrevi outros versos, joguei no grupo do whats e chamei os colegas a contribuírem com versos, estrofes ou simplesmente com ideias.
Poucos colegas se animaram a contribuir com o trabalho, mesmo assim, reuni as poucas e parcas contribuições feitas e escrevi outra letra. O Vinícius sugeriu que todos tentassem modificar a metrificação da letra, o que não foi atendido por ninguém.
Foi aí que eu percebi que o trabalho seria realmente solitário, então na quinta-feira antes do último encontro da oficina peguei outra ideia e escrevi outra letra, que acabou sendo elogiado pelo Vinícius Brum e pelo Luiz Carlos Borges no momento que postei no grupo.
Confesso que fui para o último encontro envaidecido pelos elogios que recebi à letra que escrevi, o que foi perturbado no momento em que, na reunião virtual da oficina, uma das participantes sugeriu mudanças na letra que escrevi porque ela achava que dizer “os versos cortam os pulsos” não ornava com o lirismo do poema.
Confesso que daí por diante o ranço se instaurou no meu meigo coração, até porque já não era o primeiro comentário desnecessário que fazia ao que vinha sendo desenvolvido. Quando havia uma letra para ser construída coletivamente não deu nenhuma contribuição, agora queria mudar o que escrevi.
Fiquei indignado com a soberba da pessoa que leu o que escrevi no máximo duas vezes e acredita que pode mudar, com base apenas no achismo, a letra que passei quatro horas escrevendo. O Borges me chamou para dizer o que achava da sugestão e confesso que o pouco que consegui dizer foi que uma mudança na estrofe afetaria o sentido poético da letra.
Não consegui dizer muito mais, porquê além de estar irritado com a situação, havia um abismo de compreensão dos sentidos interpretativos do que estava escrito (quatro horas de leitura e escrita, contra no máximo duas leituras do texto). Era como tentar explicar controle de constitucionalidade pra uma criança fazendo birra.
Pra minha alegria, o Vinícius Brum fez uma defesa poética, bem fundamentada, da letra que escrevi, me senti honrado pelas palavras. E no fim prevaleceu o que eu havia escrito, como devia ser.
Estou contanto essa história porquê tenho lido sobre bloqueios criativos e uma das coisas que aprendi com estas leituras é que este tipo de pessoa costuma ser um dos vilões da criatividade artística. São pessoas que não escrevem, não estudam, mas julgam que com apena uma leitura podem modificar o trabalho artístico alheio.
É como se depois de se trabalhar no projeto, na fundação, nas estruturas e na construção da casa, a pessoa aparece do nada e pede pra mudar as janelas, simplesmente porque acha que não ornou com o restante da obra.
São carrapatos da criatividade alheia que parasitam sobre o trabalho artístico dos outros. São daquele tipo de pessoa que aparecem no dia da entrega e pedem pra pôr o seu nome no trabalho que não ajudaram a fazer.
Com conceitos medíocres sobre arte, acham que escrever é jogar o que sentem no papel, acreditando que quem lê deve sentir o mesmo por causa disso. Escrever o que se sente serve como um escudo pra blindar a falta de capacidade criativa.
Porém, quando se trata de processo criativo não estamos falando de sentimentos, mas de técnica. Uma letra não fará quem lê sentir raiva, tristeza ou revolta, porque o escritor jogou isso no papel, mas sim porquê foram usadas as ferramentas da linguagem adequadas para despertarem estes sentidos em quem lê/ouve a obra de arte.
Agora voltando para a letra escrita por mim, preciso confessar que não escrevi nada do que penso ou sinto sobre o tema, bem pelo contrário. Para o meu gosto poético a letra é bem comum, a única estrofe que gosto de verdade e acho bem escrita é segunda, exatamente a que sugeriram mudar.
Essa é a única estrofe de toda a letra escrita com uma densidade interpretativa mais profunda, onde busco dizer algo que não está escrito. Ela está escrita para gerar essa quebra na ideia de que criar é um ato divino contido na primeira estrofe.
Essa imagem mais impactante que causa desconforto em alguns leitores não está escrita de forma aleatória, ela é fruto de uma escolha pautada pela técnica. Eu poderia escolher outra imagem, outras palavras e outras rimas, porém, nenhuma delas causaria esse impacto que eu queria causar.
Furtar-se dos comentários dos prepotentes que se julgam artistas e querem a todo custo modificar aquilo que não entendem na obra dos outros é um desafio para blindar a nossa criatividade de ser sacrificada pelos vilões da criatividade.
Eis a letra escrita sobre o tema "Missão, vocação e festa" proposto pelo Vinícius Brum no primeiro encontro e o vídeo do último encontro, onde ela foi musicada:
Missão é um sopro divino
que acende em cada destino
As brasas da inspiração
Acende um dom musiqueiro
Que o coração cancioneiro
Vai transformar em canção.
Na rapidez dos impulsos
Os versos cortam seus pulsos
Pra sangrar nas entrelinhas
Na lucidez dos compêndios
Acendem outros incêndios
Pra queimar ervas daninhas.
Na vocação das guitarras
Que plangem prantos e farras
Nenhum encanto se quebra
As brasas jazem dormidas
Pra costurar as feridas
Que o cancioneiro celebra.
No desatino dos dramas
Acordes queimam nas chamas
Os pensamentos ranzinzas
Inspirações passageiras
Acordam velhas fogueiras
Adormecidas nas cinzas.
Missão é um sopro divino
que acende em cada destino
As brasas da inspiração
Não há razão que a detenha
Que o cancioneiro tem lenha
Pra incandescer a canção.
@oantonioguadalupe