O artifício do não pensar

Há quem suponha que pensar seja algo tão natural quanto respirar. Pelo que temos visto nos últimos tempos, se pensar é como respirar, estamos vendo peixes lutando para viver na terra.

Biologicamente podemos definir o pensar como uma sinapse, e embora todo ser humano seja capaz de realizar uma, espanta a incapacidade de exercer raciocínios minimamente lógicos e coerentes.

Assistimos, espantados, a internet jorrando na nossa cara toda hora um mar de seres “não pensantes”, que muitas vezes exercem influência em um rebanho de outros seres que abdicaram da capacidade de pensar. Entregar a tarefa de refletir a outra pessoa parece ser a grande marca da sociedade da adesão.

As vezes parece que as pessoas que escreviam aqueles absurdos (?) que apareciam nas pérolas do Enem do Programa do Jô tomaram conta das redes sociais. A gente lê cada absurdo que fica se perguntando “como é que pode?!”

E é algo diferente de ignorância, mas sim um não pensar mesmo, que costuma sempre vir coberto por uma extensa camada de arrogância. Aí está o paradoxo, o dilema de Schroedinger dessa gente, eles tratam o seu não pensar como um saber. Eles são simplesmente investidos do verdadeiro saber, um saber que não foi contaminado pelo marxismo cultural.

O saber se instala na cabeça destas pessoas como um aplicativo, é instalado no telefone. (O saber é construído aos poucos, antes de caminhar é preciso engatinhar, mas esse povo acredita que pode voar. E se disserem que vão morrer ao pular o prédio, que a lei da gravidade não é só uma leizinha, eles vão dizer que isto é apenas a sua opinião. Ao se quebrar todo no chão, jogarão a culpa em você porquê torceu contra)

Para esse pessoal Newton devia estar lendo Paulo Freire.

O lugar que o não saber ocupa, ou melhor, desocupa. Acaba sendo preenchido com verdades absolutas, normalmente ditadas por uma “autoridade” que se estriba em valores nitidamente conservadores.

Uma espécie de o mestre mandou que acontece num nível mental. O espaço do não pensar propício para heróis, grandes salvadores, seja da humanidade, seja da pátria. O campo do não pensar é propício para o messianismo.

(Pequena reflexão, parece interessante que tenha sido preciso inventar o diabo, sendo muito reforçada a sua imagem pelas igrejas neopentecostais, visto que a imagem do salvador messiânico prescinde de um inimigo, que Jesus, ao que se sabe, não teve, ao menos não desta forma.)

Para que se entenda, o espaço do não saber precisa ser ocupado para que funcione o mestre mandou, esse espaço precisa ser preenchido com o messianismo, com o inimigo imaginário sobre o qual vai recair a culpa de todos os males (do mundo e da pátria).

Esse vazio é preenchido também com o consumismo, o que explica o manifesto dos “não pensantes” ao exigirem a abertura do comércio, num teatro onde fingem preocupação com os que necessitam trabalhar na pandemia, mas buscam apenas minimizar os prejuízos ao seu lucro.

O hospedeiro do não pensar precisa do consumismo, pois são os símbolos do consumismo que sustentam o seu status, por isso é tão comum o não pensante ostentar carros grandes para ostentar o seu “sucesso”. Veja que quando a pessoa abdica de pensar, ela não se contenta apenas em ter, ela quer ter o da marca tal que significa ostentação e sucesso.

Preenchido esse espaço do não pensar, com verdades absolutas alicerçadas em crenças inabaláveis, não sobre espaço para a reflexão, para o exercício do raciocínio para compreender questões simples como a importância de ouvir autoridades científicas e sanitárias durante uma pandemia.

Não há exercício de qualquer raciocínio lógico na crença de que uma emissora de TV está causando alarmismo e sensacionalismo com relação a pandemia, quando é possível, facilmente, através da internet, constatar as consequências que o coronavírus vem causando no mundo todo (o espaço do não pensar é o escritório do negacionismo).

O não pensar é preenchido desta forma também para que não haja espaço para escuta, quem já tentou trocar uma ideia com pessoas que optam por não pensar percebem que o diálogo é ineficaz, não porquê ela jamais vá concordar, mas porquê não há espaço para a escuta, até porquê a escuta e a reflexão podem abalar verdades “inabaláveis”.

Por isso o debate nestes casos acaba sendo uma constante repetição de conceitos simplórios, até porquê no espaço do não pensar, não se é possível perquirir questões mais complexas, é preciso fazer simplificações rasas, ancoradas normalmente no preconceito social para conseguir defender seus pontos de vista (o argumento já vem embalado à vácuo).

Talvez seja interessante dissertar um pouco mais sobre o ato de não pensar, visto que o espaço onde vigora o não pensar é um campo fértil para a proliferação de notícias falsas.

Estas fakes são em sua maioria respostas rápidas e rasas sobre anseios preconceituosos das pessoas que terminam por negar a realidade, por desconhecer os fatos e propagar mentiras que confortam as verdades absolutas.

Desta forma, as pessoas compartilham a estória fantasiosos de que uma vereadora assumidamente lésbica e casada com uma mulher, tivesse um relacionamento com um traficante.

Se por um lado a criação da notícia falsa tem claros objetivos políticos de atingir a imagem da vereadora assassinada. Por outro lado, temos a aderência em massa “não pensante” a disseminação da fake que decorre desse eco que surge do preconceito, insistentemente repetido, de que defender direitos humanos é defender bandido.

Vale a pena lembrar que esta fakenews foi compartilhada por uma desembargadora, o que suscita outras reflexões, mas de início esta questão nos levar a constatar que a adesão a notícia falsa não depende de uma ignorância por falta de acesso a recursos, mas de reforço das crenças preconceituosas anteriores.

Neste sentido, a disseminação das fakenews não decorrem de um suposto potencial informativo da notícia falsa, mas sim da confirmação das crenças anteriores, na maior parte das vezes calcado em retóricas preconceituosas.

Outra questão importante a ser refletida é que essa desembargadora não é uma mente solitária adepta do não pensar no âmbito do judiciário.

Veja que o espaço do não pensar é preenchido por crenças, em sua maioria absolutistas e obscurantistas, que não deixam espaço para a escuta. Eis então uma questão de suma importância, como confiar na decisão de pessoas que não exercem a escuta?

É assim que começo a entender as decisões de uma mesma turma do tribunal que me surpreendeu duas vezes ao decidir de forma contrária ao laudo pericial, com fundamentações rasteiras, que se apegam a qualquer fato divergente do laudo, usando a retórica para fermentar a robustez do suposto elemento de prova que derrega as conclusões médicas que decorrem de um exame do paciente e do seu histórico médico. Assim torna-se possível entender decisões que presumem provas que não foram produzidas nos autos.

Pensou numa pessoa com camiseta verdade e amarela da seleção, né?!

@oantonioguadalupe