Vela acesa em alto-mar

   Toda e qualquer embarcação aderna, sucumbe-se, soçobra-se com o tempo, mas nem toda embarcação espera findar o tempo útil destinado a ela, para se soçobrar.

 Após entranhar mar aberto, sulcar as águas salgadas; e abrindo esbranquiçadas clareiras laterais, o rastro de espuma borbulhante sinalizando a volúpia da aventura, retorno ao paradeiro habitual.

   Como pinguim auto deserdado, levado por fortes ondas, chego introspectivo, silencioso, reflexivo. Os primeiros minutos, as primeiras horas, me são estranhas. Possuem o sabor da deselegância. O perfume em frasco vazio.

Abro portas e janelas. Acostumados ao movimento, ao zunzunzum diário, todos os ambientes estão reticentes. Estão tomados pela incompletude.

    Aos poucos, vagarosamente, o sol se aproxima. Lança seus raios cálidos, iluminando os ambientes; com eles, vêm a brisa minuana. Acaricia a poeira, que esparrama-se sobre os móveis, inspirando o sorumbático escriba. Faltam-lhe versos, sobra quietude.

     Às vezes as palavras escritas perdem o significado, emudecem. Quando isso ocorre, o melhor é recorrer a outra forma de arte: a música, por exemplo. E redescobre-se em "do silêncio para algum outro lugar". E o outro lugar é a missiva, na qual ordena: "viver a vida somente por vivê-la, não é viver; é preciso sulcar as águas, correr estradas, esclarecer os indecisos, dialogar com as sombras, ter vistas para as estrelas, ler as entrelinhas do não declarado, cumprir a missão, para a qual, fostes enviado".

       Requisitadas por versos soltos, as palavras escritas voltam a adquirir brilho próprio; inspiram o ludismo de caminhar lento. Chegada possível!

    Altas velocidades, bastam aos pássaros de prata; em contrapartida, a lenta, porém constante e eficiente embarcação não flutua na superfície aquática, levita no espaço. Atinge o porto.

P.S.: gostar do evitável, fascinar-se pelo inóspito e interagir com o insuperável, é a lei máxima disciplinadora, a ser seguida pelos que pretendem embrenhar em águas procelosas de terras ermas.

Caso contrário, insinuando total segurança e estabilidade, a embarcação se manterá amarrada ao toco, valsando na superfície das águas. Porém, com as velas, totalmente apagadas. Sem o mínimo de luz.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 13/06/2021
Reeditado em 16/06/2021
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