DOSSIÊ PANDEMIA
Decidi me desconstruir para de novo me construir. Normal, pra isso serve o viver. Este constante re-começo. Problema é que no meio deste processo caos generativo, aparece uma Pandemia. Se o mundo inteirinho virou de ponta a cabeça, não seria o meu mundo, sozinho, a se manter em pé, em ritmo de vida que segue. Não. STOP para o meu mundo e para o mundo de todo mundo. Palavras novas, atitudes novas, movimentos novos ou falta de movimento dada a premência do confinamento. Tudo tão inédito e insano que quem não pirou não é bom da cabeça ou doente do pé. Será que tudo o que foi dito até aqui tem ainda significado? Rasgo tudo porque posso ter-me esquecido quem sou? E o que me interessa quem fui? E as mulheres da minha vida, como estão agora? O que são? Onde estão? Como estarão? Guardo? Aguardo? Que sensação estranha me invade as entranhas e nem consigo parar de jogar trocadilhos no ar, só escrevendo o que me vem à cabeça. Paro por aqui me recusando a citar as milhares de frases ditas neste “novo Normal” Nem sei se gosto deste bordão também. Que normal, ora bolas! Atire a primeira pedra na vidraça de quem acha que já foi normal. Mentira! Não somos normais, somos Humanos, cacete! E também decidi que falar alguns impropérios é libertador e vivendo assim, enjaulada, qualquer coisa que se assemelhe a liberdade, ainda que semântica já valeu o desabafo. Preciso desaguar as sensações do agora e depois pensar se as histórias aqui contadas, com a verdade daquela minha alma,tem eco neste mundo paralelo. Vou ver no que dá fazendo este pequeno arcabouço, uma espécie de inventário destes dias sem fim. Que de repente ao despertar olho através da janela e vislumbro a esperança de um fim e no outro a desesperança e um outro fim. O fim em si mesmo. O fim em mim mesma. Verbalizo: Quando isso tudo acabar, eu, nós seremos os grandes sobreviventes? Depois, quase sem intervalo chego a pensar que isso não vai passar...Calma,Tudo passa, recupero o ânimo. Mas, deste diálogo travado no interior de mim, meus intra- eus debatem o porvir com angústia. Como viver esta inquietude interna sem desmontar cada pedacinho que eu pensava estar construindo até aqui. Marco zero? Começar tudo outra vez? Quem sabe no final até possa descobrir que sou eu mesma! Então sem mais divagações vamos às impressões.
Nos primeiros dias sentia que o céu estava obscurecido. O ar pesado,pesaroso. Uma desconfiança. Lá fora, tudo fechado. Aqui dentro, ninguém entra, ninguém sai. Ficamos só nós. E agora, sem as distrações do cotidiano, horários, trabalho, correria no almoço, casa arrumada... Precisávamos saber como era viver assim. Todos juntos o tempo todo. Tivemos boa vontade no início. Dividimos algumas tarefas mas a resistência logo, logo se instaurou e um sistema de castas ao revés quis ganhar voz. Filhos querendo sucumbir a ordem hierárquica e subverter aquele novo gueto. Muitos dias sendo para nós, os únicos contatos físicos que podíamos contar. O resto era nuvem. Estávamos dentro daquelas naves de filme de ficção e o COVID era o alien. Cada qual na sua colônia vivendo o seu bocado dentro da estrutura familiar instituída. Dentro do contexto econômico que se tinha até então e que iria piorar, ou melhorar, dependendo de que lado do espaço sua colônia estivesse organizada. Os dias fingiam-se lentos e a comunicação externa através das redes, agitavam tudo dentro desta lentidão aterrorizando,diária e maciçamente nossas cabeças. A política polarizada-que não será aqui tema em honra ao que resta da minha organização interna-transformou a doença em verdades e mentiras, fakes, dois lados de uma mesma covid e apareceram,pipocando em todos os aparelhos dedilhados freneticamente dentro de cada quadrado receitas para curas, teorias conspiratórias, caça às vacinas. Tudo para destrambelhar mais ainda a cuca de todos nós, pobres viventes. Na medida em que as ondas vão se balizando, o confinamento vai sendo afrouxado ou intensificado conforme as aglomerações clandestinas ou descaradas,vão ocorrendo.
E eu com isso? Aqui no meu canto, sofrendo o meu tanto. Nunca visitei tanto o consultório psiquiatra como agora. Nunca vi tanta oscilação na dosagem ou troca de remédios. Quase emprestando o repertório de uma bolsa de valores Absorção, distribuição, Sobe miligramas, desce miligramas, investe neste novo, dosa com o antigo, desespero extremo, euforia máxima mas acima de tudo Faça terapia pois os fármacos não são o único escape, ops, caminho. Verdade seja dita, nunca me perdi e me achei tanto quanto nesta fase pandêmica. Nunca me senti tão próxima e empática como agora.
O ano bomba acaba e acho que vou voltar para a Terra. Sem chance, as ondas Color Block ainda continuam oscilando e continuamos confinados e agora, na minha cidade pequena muitos abrigos subterrâneos, colônias foram sofrendo baixas. Pessoas conhecidas, famílias, o carinha que mora logo ali. Sentimos na carne a morte e ela é feia, triste e solitária. Você não tem o direito de enterrar, ou cremar, ou se despedir dos seus queridos e em meio a tribulação, a fome que doí em tantas colônias. Depois que o alien, que nem veio de outro mundo, for combatido ou acalmado contaremos novas histórias e temo que o abismo social seja o novo distanciamento social (embora esta história não seja nova) Um ano e meio desta varredura sem precedentes e busco harmonizar meus desencontros íntimos para poder dialogar com o mundo. Amo mais que nunca os filhos e o marido na medida que aprendi que poderia execrá-los as vezes. Que é humano sentir raiva de quem amamos e que é humano começarmos a tempo e a hora um lastro que equilibre nossas águas. Sou um barco e não quero naufragar.
Dando sequência ao dossiê, também descubro o bom e o belo. Faço jardinagem amadoramente amando, converso e cuido das minhas plantinhas como num ato devocional. Este momento também me devolveu alguns hábitos que já estavam sendo engolidos pelo estudo que o oficio oficia. O delicioso costume de ler. Livro escolhido, desobrigado. Eu quis, eu desejei. Quem paga o meu salário não tem nada com isso e nem adianta competir pois só mergulho agora nas profundezas do que me é prazeroso. O resto das letras fica nos e-mails institucionais. Também pratico a vagabundagem sempre que posso, no café demorado, no filme bom, na descoberta de pessoas fantásticas que têm algo a acrescentar no mundo e que descubro esgravatando as redes, que também contam boas novas. Empreendo este vagabundear lamentavelmente bem menos do que mereço ou gostaria pois sou massacrada pelos meus “amos” com exigências que beiram a sandice, exaurindo o meu tempo e certamente o tempo de um sem número de subordinados com uma porção, não, poção de ensaios e fórmulas fantasiosas com jeito de que é certo. O Império, o Estado de Direito ordena e vocês obedecem porque têm juízo. Qualquer semelhança com outros sistemas é mera equivalência. É uma pantomima, um logro. Mas, para além disso, também vou experimentando a fé. Acho que esta conexão que tenho buscado me mantem de pé.Com uma escuta mais apurada para o sofrer do outro, o que é algo formidável pois meus barulhos e desordens internas não segaram o meu olhar, nem me ensurdeceram. Eu ouço a voz das outras colônias e me compadeço, estremeço e me movimento, com as ferramentas das quais disponho. Acho que isso tem acontecido com um bocado de nós e isso é bom. Neste movimento tenho visto Jesus por aí e Ele é lindo!
Valéria Matos Escobar