Uma vida interrompida
“Uma vida interrompida”, de Etty Hillesum (Editora Ayné, Belo Horizonte), é um testemunho contundente, uma visão nova, iluminada, do bem e do mal. Etty vivia numa Amsterdam ocupada por Hitler, e começou a escrever o seu diário em 1941, com 27 anos de idade, seguindo o conselho de seu analista, Julius Spier. Logo torna-se secretária e amante de Spier. Era governanta da pequena pensão onde vivia e amante do dono. Não era nenhuma jovenzinha inocente, mas uma advogada, estudante de línguas eslavas, professora de russo, uma mulher madura vivendo em um mundo que se desfazia, e com plena consciência dessa hecatombe. “Afirmei uma vez para mim mesma em voz alta, no meio da noite, constatando com certa sobriedade: ‘Agora estou no Inferno’”.
Etty trabalhava no Conselho Judaico e solicitou transferência para o Departamento de Bem-Estar Social do Campo de Trânsito de Westerbork. Ali prestará todo tipo de ajuda a milhares de deportados judeus antes de serem transferidos para o destino final. Como pertencia ao Conselho Judaico tinha autorização para ausentar-se do campo, o que fez três vezes, deslocando-se até Amsterdam. Na terceira vez ficou seis meses fora. Poderia fugir, passar à clandestinidade, mas preferiu “partilhar o destino do seu povo”. Ali receberá os seus pais e seu irmão, e partirá com eles para o campo de extermínio, Auschwitz. Se não fosse, outro iria no seu lugar.
Diz no seu diário: “Qualquer situação, por muito miserável que seja, é absoluta e contém em si o bem e o mal.”
Percorrendo os longos corredores, debruçava-se sobre cada doente e perguntava: ‘O que posso fazer por você?” “Nessa tarde (diz em uma carta), fiz uma vez mais, a ronda pelo meu barracão-hospital, indo de cama em cama. Quais as que ficariam vazias no dia seguinte? As listas de transporte nunca são reveladas senão no último momento; ainda assim, alguns sabem antecipadamente que terão de partir. Uma menina chama-me. Está sentada na cama, muito direita, de olhos arregalados. A menina tem pulsos finos e um rostinho estreito e transparente. Está parcialmente paralisada, começava justamente a reaprender a andar, apoiando-se em duas enfermeiras, passo a passo. ‘Já sabe? Tenho de ir?’, diz-me, sussurrando. ‘Como? Você tem que ir?’. Olhamos por momentos uma para a outra, incapazes de falar. O seu rosto como que desapareceu; ela é apenas olhos. Então, volta a falar, com uma vozinha monocórdica e abafada: ‘Que pena que tudo o que aprendemos na vida tenha sido em vão, não acha?’ E ‘É tão difícil morrer, não é?’”. Mais do que o relato de um drama, sentimos a própria essência do drama, na primeira pessoa, Etty vive o drama do outro.
Nada é gratuito, mas disponibilidade e entrega. No seu diário, lugar de confidências imediatas atiradas no papel, Etty Hillesum descreve o que sente e o que vive com uma simplicidade desarmante. Afirma: “E pode ser que consigam arrasar-me fisicamente, mas mais do que isso não.” Conclui: “Eu acho a vida bela e sinto-me livre. Os céus dentro de mim são tão vastos como os que estão por cima de mim.”
O seu cotidiano é cruel, com todas as coisas que esconde e revela: “Como isto é estranho. É guerra. Há campos de concentração. Pequenas crueldades amontoam-se por cima de pequenas crueldades. Quando caminho pelas ruas, sei que, em muitas das casas por onde passo, há ali um filho preso, e ali um pai refém, e ali têm de suportar a condenação à morte de um rapaz de dezoito anos. E estas ruas e casas ficam perto da minha própria casa.”
São terríveis as constatações do seu dia-a-dia: “O que eles querem é o nosso extermínio, também isso eu aceito. Sei-o agora. Não vou incomodar outros com os meus medos, não vou ficar amargurada se outras pessoas não entenderem do que se trata, para nós, judeus. Trabalho e vivo com a mesma convicção e acho a vida cheia de sentido – sim, cheia de sentido – apesar de tudo, embora já não me atreva a dizer uma coisa dessas em grupo. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas nos meus pés e o jasmim atrás do quintal, as perseguições, os horrores indizíveis – tudo em mim é como se fosse uma unidade, e eu aceito tudo como uma forte unidade e começo a entendê-lo cada vez melhor, para mim, sem que ainda consiga explicar a alguém como é que tudo isto se encaixa”.
Ouviu numa rádio inglesa que setecentos mil já haviam sido aniquilados. A possibilidade da sua destruição é cada vez mais evidente, mas Etty permanece firme e íntegra. Terá sido a crescente violência nazista que forçou Etty à tomada de consciência da sua identidade judaica? Não há nela qualquer derrotismo. Aprendeu a aceitar a vida como um todo, com significado, apesar de todas as barbaridades. Por entre o quadro lúgubre de destruição e desumanidade, foi capaz de vislumbrar a beleza e o sentido profundo da existência humana. É tanta a sua grandeza de alma que sente compaixão dos seus algozes: “Na realidade não estou com medo. Não porque eu seja valente, mas porque eu sei que estou lidando com seres humanos e hei de tentar entender toda e qualquer expressão de quem quer que seja, na medida do possível. E isto foi o mais importante desta manhã: não o fato de um jovem oficial da Gestapo ter gritado comigo, mas o fato de eu não ter sentido qualquer indignação e ao contrário ter experimentado uma sincera compaixão pelo rapaz”.
Há muitas citações neste texto porque tudo que Etty Hillesum escreve é importante, impactante, terrível. Etty vira de ponta-cabeça em nós aquela ideia de que os judeus caminharam para a morte como cordeirinhos. Morreram como animais no matadouro, mas com dignidade. Os nazistas quiseram aniquilar toda a dignidade dos judeus, e aparentemente o conseguiram, mas apenas aparentemente, por dentro eles preservaram toda grandeza humana.
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