Carta ao poeta maior

Caro poeta Carlos Drummond de Andrade,

Estou para lhe escrever há anos, parecem séculos. Esta carta não vai encontrá-lo mais, será a primeira que ficará sem resposta. Mas eu precisava lhe dizer algumas verdades, e vou dizer.

O primeiro contato que eu tive com a sua obra foi em 1964, eu estava com 17 anos de idade, estava no seminário e os padres condenavam de primeira mão dois poetas: Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. Dois loucos, diziam. Foi por isso que, quando encontrei na biblioteca um livro – “Fazendeiro do ar & poesia até agora”, de1954, a obra de meu poeta, sete livros de poesia – fiquei com a maior curiosidade.

Da biografia, eu me interessei por um fato, que hoje acho pequeno. Drummond estudava num colégio de padres e foi expulso por “insubordinação mental”. Eu também seria expulso do seminário, sem os padres mencionarem nenhum motivo, mas que era exatamente esse: insubordinação mental, o que quer que seja isso.

O primeiro poema do livro, “Poema de sete faces”, parecia ter sido feito para mim. “Vai, Carlos, ser gauche na vida.” Carlos é meu segundo nome, e guache define o que eu era: diferente, estranho, desequilibrado, ou qualquer adjetivo que me mostrasse como um ser sem qualidades. “As casas espiam os homens/ que correm atrás das mulheres.” Ou “O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas.” Não está me descrevendo? Eu despertava para a sexualidade, que era o que o poeta mostrava ali. Por isso os padres o chamaram de louco?

“Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco?” Esse não era eu, o abandonado por Deus? Eu pensava que o salmista me conhecia, quem me conhecia era esse poeta lá dos cafundós do Judas. “O homem atrás dos óculos e do bigode” – logo eu usaria óculos e bigode como o poeta, que – “tem poucos, raros amigos” – e a descrição estaria completa: eu, um cara sem amigos.

O poema seguinte, “Infância”, descrevia a minha infância, no mato, sim, eu fora criado no mato como o poeta. Como o poeta, eu tivera uma infância mais bonita do que a de Robinson Crusoé. Eu assistira ao “Casamento do Céu e do Inferno”, eu vira quando a “carne penetra na carne”, e vira que isso era bom.

Mais à frente vi um poema com o meu primeiro nome, “José”. E era um poema totalmente feito para mim. José era o cara sem horizontes, num beco sem saída, e agora? Eu não tinha solução, o conhecimento de Deus se apagava, como uma fábula se apaga. “E agora, José?” E agora, eu? O que eu faço agora? Num beco sem saída e, no entanto, é preciso prosseguir. “José, para onde?” Eu me sentia um “bicho do mato”, só não me sentia forte, mas o poeta me chamava a atenção: “José, você é duro”.

A “Confidência do Itabirano” também me descrevia. Eu também vinha de uma cidade pequena, Dois Córregos, SP. Poucos anos vivi em Dois Córregos, “por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.” Não era preciso que a minha cidade fosse uma cidade de mineração como Itabira, mas era afastada do mundo, poderia ter as “suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes”. Tinha certamente, aliás, eu herdara dela “esse hábito de sofrer”, que não me diverte nada (desculpe aqui discordar, Poeta), que carrego comigo como um amuleto. Carregamos a nossa cidadezinha do interior nas costas, por mais que pareça “uma fotografia na parede”: “Mas como dói!”

Vou terminar citando “Os ombros suportam o mundo”. Eu tinha chegado àquele “Tempo de absoluta depuração”? Tempo em que o homem se encontra totalmente sozinho, “tempo em que não se diz mais: meu Deus!” Conheci que os homens se matam sem motivo nenhum, que, para provar que a vida prossegue, é preciso haver guerras e outras calamidades neste mundo louco. “Chegou um tempo em que não adianta morrer.” Chegou um tempo em que acabou toda “mistificação”. Este, meus amigos, é o meu mundo.

Com “A flor e a náusea” entrei no mundo da cidade. Descobri que me tornei um ser urbano, e que precisava cantar os “crimes da terra”, embora não pudesse perdoá-los. Descobri que “o meu ódio é o melhor de mim”. Descobri que “O tempo é de fezes, maus poemas, alucinação e espera”, mas a poesia nasce de repente, sem porquê, como a “flor (que) nasceu na rua”.

Me lembro daquela época de um “Canto esponjoso” com a sua “Vontade de cantar. Mas tão absoluta/ que me calo, repleto.” Sim, a poesia pode fazer-nos calar. Podemos estar repletos de seu absoluto, nem precisamos dizer mais nada. O silêncio será a melhor palavra.

O título do último livro desta coletânea, “Fazendeiro do ar”, já em si me é suficiente para uma viagem no tempo. O meu pai foi um fazendeiro na juventude, com tudo que a palavra fazendeiro carrega, status, poder, dinheiro, etc. Quando casou já era pobre, a fazenda não dava para sustentar os seis irmãos e suas famílias, e foi vendida. Tornou-se um fazendeiro do ar. Eu, principalmente, tornei-me um fazendeiro do ar. Tenho a fazenda na alma, a terra, as plantações, o gado, trago tudo dentro da alma. Talvez nem isso, tão distante tudo ficou.

É hora de concluir esta carta, já longa demais. Muito aprendi com a sua poesia, meu Poeta, e estou deixando aqui o meu agradecimento tardio. Eu não seria o poeta que eu sou, eu não seria talvez o homem que eu sou (mas eu devia tirar esse “talvez”, o homem e o poeta são a mesma coisa), sem a sua poesia. Muito obrigado, Poeta.

Respeitosamente,

José Carlos Brandão