Confio em Ti
Deitado no leito do desconhecido em um bloco cirúrgico qualquer
Uma mesa cirúrgica acalenta o sofrimento, a angústia, o medo, o desespero e a esperança de que o possam devolver para o mundo dos aflitos, dos contritos, dos viventes...
Enquanto espera anestesiar-se e ver seu mundo apagar, um barulho de metais se ouve por perto, os instrumentos que adentrarão o seu corpo e invadirão a sua alma, o seu âmago, seu íntimo, a sua sorte, sua incerteza... e depois acordar e ver-se curado, seu sofrimento amenizado, ou talvez esta luz não mais poder ver...
As vestes de uma só cor, pessoas com uma só dor. Máscaras, gorros, capotes, aventais, olhos, óculos. E as luvas.
Silêncio.
Como se ainda estivera acordado, um líquido tão frio quanto as lápides que nos aguardam caminha sobre meu corpo... ele escorre pela pele, naquele corpo deitado, inerte, frágil, à mercê da sorte... e, como acordado, vejo pessoas se aproximando do seu leito. Me põem fábricas, instalam incontáveis aparatos, monitoram minha vida, o meu destino...
Esperam os meus pais, os meus filhos, irmãos, os amigos, espera o meu par... e espera-se que a vida possa continuar a brilhar após as mãos, as mentes, os corações, a alma daqueles que irão entrar no meu corpo, assim como o levam, o tragam de volta ao seu castelo, ao seu lar! Em paz.
Bisturi, por favor!
A frase ecoa como uma sentença final.
A declaração de impotência, de entrega, de responsabilidade, competência, concentração. Zelo e frieza, em corações quentes, ávidos, confiantes e ao mesmo tempo temerosos. Pelo que, após adentrar as entranhas do ser, torna-se por ele mais responsável do que para consigo mesmo! A pele é dilacerada! A lâmina turva-se. Abrem-se os músculos, adentram o véu que separa a sua vida externa do interior do desconhecido. Mas também do esperado.
Dissecam a vida.
Uma pessoa, um pai de família, um filho, uma criança... e se chega ao limite entre a perícia e o risco. Luta. A prudência à displicência. O agir à negligência. A decisão contra o inesperado. A obrigação e a certeza de acertar! O Não poder errar. Confiança. Medo. Não de este erro cometer, mas devolver à vida o ser que ali padece, passivo, para a sua, para os seus, para o mundo que o concebeu.
Quem deu esses poderes a estas pessoas de rasgar o manto do corpo e adentrar a alma?
O tempo passa. O sangue escorre, a vida espera. Alguns minutos, algumas horas... eternos momentos que parecem não passar. O final já estava, enfim, escrito. Programado antes do seu início. Porque Tudo tem que chegar ao seu fim.
Porque tudo Tem um fim...
E o coração ainda bate. A respiração não para. O sangue ainda flui pelas veias e então eu fecho o que eu abri. As agulhas rasgam o tecido, o fio corre na incisão da vida. Os planos são vedados. De dentro para fora, ate à luz do mundo. E, depois de aberto, novamente estou fechado. Até o fim de tudo. Com a vida. Ou sem ela. Daquele momento, daquela ânsia, daquele ato, a esperança final!
A vida continua! Prevaleceu quem teve o direito de entrar em mim. Que teve a responsabilidade de consertar um pouco de mim. E, de certo modo, um pouco de si. De me devolver à vida. Continuar a sua...
Confio em ti.
Minhas palavras antes de me anestesiar. Proferidas ou não, às vezes pensadas e incerto de meu futuro. Do meu retorno... mas... eu confio em ti.
Tu? Partirás para outras lutas contra a morte, contra a dor, para a cura, ou alívio, ou satisfação... ou ao teu destino. Por ora, entrego-te a minha vida. O meu corpo. A minha alma.
Espero em Deus.
Que Ele abençoe sempre as tuas mãos! Pois sei que tudo pedes a Ele e tudo entregas sempre que uma vida tomares, ou que a angustia chegar, ou a incerteza pairar, ou que o coração deixe de bater...
Por favor. Lutes por mim até o fim. Pois não tenho mais ninguém para me ajudar. Sei que a tua maior vaidade é a tua humildade. E o teu conhecimento o teu norte! Sei que não farás por mim, em mim, objeto de soberba. Sei que não arriscarás em mim as mazelas de se tentar ser maior do que já se é. Pois és grande o suficiente para poderes apequenar-te na simplicidade do que fazes. E vencer na tua luta, que também é a minha!
Pois estou entregue à tua sorte, à minha sorte, à vida ou à minha morte.
Nas tuas mãos ensanguentadas, ágeis, certeiras, humanas,
O simples humano ser...
Que eu sou!