trem lotado: meio castigo, meio vigilância, nem tão tenso, nem tão de boa

Quando entrei no trem, graças a Deus meio vazio, logo percebi um clima meio diferente, nem tão tenso, nem tão de boa. Foi perto do horário de pico.

Corri. Tinha muito lugar vago. Achei um canto pra ficar, de pé e isolado, me equilibrando, surfando.

Desde que começou a pandemia, entrar no trem e no metrô é o desafio diário. Na verdade, é foda mesmo. Um sufoco. Entrar é sufoco. Não ficar tão perto ou grudado nos outros é mais sufoco. Não encostar a mão em nada, não encostar a mão no olho... cidadão que tira a máscara, corona, covid, Jesus... gente em movimento, comendo, comprando, vendendo. Vende-se de tudo no trem. Afinal, tal diz Solano, "tem gente com fome"!!

Fico espiando o pessoal ao redor. Olhadela geral. Todo mundo com celular na mão, joguinho, netflix, insta, zap, notícia, gol, status, rádio, spotify, tem de tudo.

Passam estações. Na hora do vuco-vuco, um rapaz caiu (ufa, foi só uma perna) no vão entre o trem e a plataforma. "Ajuda, ajuda, puxa ele pra cima!" e tudo bem de novo. Bora! E o rapaz, olhos marejados: "obrigado aí pessoal, fiquei com medo, foi por pouco, valeu gente!" Trem que segue.

Foi exatamente esse fato que despertou tudo o que estou escrevendo aqui.

De vez em quando repito pra mim mesmo, preciso lembrar: amo gente, amo ver gente, gente como eu, que dança sem música, que dança no trem com fone no ouvido, que balança a cabeça feliz, que vive se equilibrando, sabe do risco, assume o B.O., vai no limite, não se estrepa (por um triz), mas corre, trabalha, batalha, sorri, irradia a fé no dia, é luz até pra quem não conhece, sem meias palavras, sem condição. Gente que cede, que na vida dá apoio, dá lugar, dá ombro, dá colo, tem senso, tem senso de classe e seu lugar, se iguala, chega perto do outro, sente a dor, ouve, dá atenção, fica perto, disponível, tenta ser, demonstra, se joga, age conforme diz e diz conforme age.

São 20 anos vivendo em São Paulo. Hoje, apesar do noticiário, meu assunto não é o coronavírus, nem a vacina. O que sempre me chamou a atenção nesse tempo todo aqui é como a classe trabalhadora, especialmente no buzão, trem e metrô, dá um drible na desumanidade na hora de ir pro trabalho e voltar pra casa! E falo sem julgamento, sem análise crítica. Não me cabe. Apenas relato: a péssima qualidade do transporte público é máquina de moer gente. É instrumento do capital para nos desumanizar.

Meio castigo, meio vigilância. O trem lotado é o controle dos corpos. Baita violência diária. A precariedade intencional do sistema gera o empurrão, o assédio, a grosseria. Gera o aperto e a lotação. A demora. Mas temos também a resistência inerente às lutas de cada um, cada uma. Temos também a risada, o fone do celular no ouvido, o cochilo. Alguns dirão "alienação". Que nada. Eu vejo é estratégia de sobrevivência e saúde mental. A galera dá um jeito. É ali que todo mundo se iguala. Tem sim um mal compreendido sentimento de pertença.

É no sufoco que se poderia gerar algum lastro de coletividade e mudança. Pena prevalecer individualidades.

Lembrei do Galeano: “dos medos nascem as coragens e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no mundo.”

Ponto final. Todos descem.

Uns ainda encaram outra condução ou uma caminhada longa até em casa. Churrasquinho no caminho, amendoim, cerveja. Vivemos quase sempre por um triz. E, consciente ou não, a maioria do pessoal que vai pro trabalho e volta no trem lotado, todo dia, só quer um pouco mais de alegria, tesão e sorriso pra sua vida e dos seus. E, queira ou não queira, mesmo sem saber disso, com palavras bonitas ou não, com teoria ou não, enfim, a gente que se reconhece, se pertence, se identifica. Nossos rostos se parecem, no olhar, no semblante, nossas vidas se aproximam. Seguimos.

Cleyton Borges (Crônicas no Rascunho)
Enviado por Cleyton Borges (Crônicas no Rascunho) em 11/01/2021
Reeditado em 11/01/2021
Código do texto: T7157464
Classificação de conteúdo: seguro