Torres de Areia
Ao ver a pequena Izabel sentada no playground, sozinha, construindo suas torres de areia, eu percebi que havia algo errado. A minha neta é sempre muito falante e enérgica, do alto dos seus quatro anos conseguia sustentar uma filosofia de vida tão pertinente, capaz de causar inveja em muitos jovens de hoje em dia.
Depois de verificar que seus irmãos estão se distraindo em segurança nos outros brinquedos, sentei em um banco próximo a ela. A menina está bastante concentrada em suas construções, ou pelo menos foi isso que pensei na hora. Após algum tempo só observando, arrisquei um palpite:
– Você podia colocar essas torres mais próximas umas das outras.
Izabel continuou em silêncio, às vezes batia com a palminha da mão para dar mais consistência às torres.
– Eu posso ficar aqui olhando? – insisti.
– Pode. – ela responde sem desviar o olhar.
Definitivamente havia algo errado.
– Meu amor, você está triste?
A resposta é óbvia, mas eu tinha que tentar alguma coisa. Izabel continuou em silêncio por alguns instantes.
– Vô, você é homem?
Achei melhor não demonstrar surpresa com a pergunta.
– Sim, acho que sou, por que?
– Minha mãe falou que nenhum homem presta. – uma das torres desmorona.
Parece que estamos indo a algum lugar.
– Ah, meu amor. Não é bem assim...
– Meu pai é homem? – mais uma torre se desfaz.
– Olha, não é bem assim... é que...
– Papai não voltou pra casa ontem. A mamãe chorou e mandou a gente vir pra cá. – pacientemente a menina tenta reerguer a torre.
Os olhos de Izabel podem ser bastante inquisidores em alguns momentos. Ela está confusa com muitas coisas, mas o assunto que ela está tentando desvendar foge completamente da sua capacidade de entendimento. Como desvendar o mundo adulto para uma garotinha de quatro anos?
– Você lembra do Papai Noel?
– Lembro.
– Então, ele é homem e ele só faz bem pra todas as criancinhas.
– É mesmo.
– E tem também os homens que construíram esse parquinho que você e seus irmãos gostam de brincar, eles são bons homens.
– Você viu eles construindo o parquinho?
– Vi, sim, eram homens bons que só queriam o bem das crianças.
– Mas, a mamãe...
– Eu sei, Bel, às vezes a gente fala umas besteiras, mas depois a gente muda de opinião. É assim mesmo.
– Por que o papai não veio pra casa ontem?
Os olhos da minha neta diziam claramente que ela precisava de uma resposta. Precisava acreditar que o mundo não é tão cruel quanto a sua mãe a fazia crer. Por mais difícil que seja a convivência familiar, é preciso ter em mente que há muito em jogo. As crianças precisam de um modelo de perfeição para construir seu próprio mundo e sempre começa com os pais. Porém, se muito cedo elas não tiverem o suporte de um lar sólido, respeitoso e alicerçado com amor, ficará muito difícil conseguir crescer sendo uma pessoa digna, um cidadão consciente e tornar-se-á um indivíduo que não acredita que vale a pena ser bom.
– Olha, Bel, eu não sei dizer porque seu pai não voltou pra casa de vocês, mas posso garantir que ele não deixou de amá-los por isso. Às vezes acontece da mamãe e do papai não ter a mesma vontade e por isso eles acabam discutindo...
– Eles estão brigando todo dia, vô.
– Bel, eu sei que é muito triste pra vocês ver essas brigas.
– Você e a vovó brigam?
– De vez em quando a gente tem uns “arranca-rabo”. – tentei diminuir a tensão.
– Mas, o senhor dorme fora de casa?
– Bel, é diferente. Vovô já tá muito velho pra ondar sozinho de noite.
– Você tem medo do Bicho-Papão?
– Não, tenho medo de ficar perdido e esquecer como voltar pra casa. Meus remédios estão todos aqui.
Izabel voltou a dar atenção às suas torres, em um momento ela parece ter desistido de fazer mais, a expressão de frustração cortou meu coração. Minha neta está num conflito enorme.
– A mamãe diz que os homens só sabem fazer besteiras, fazem guerra, fazem mal as outras pessoas. Meus irmãos ficaram abraçando ela. Eu fiquei olhando pela janela para ver se o papai aparecia.
– Lembra quando o padre falou daquela vez que o Papai-do-Céu mandou o castigo das águas e Noé teve que construir um barco grande para salvar os animais?
– Lembro.
– Pois é, naquele tempo a maioria dos homens estavam maus mesmo. Aqueles homens só faziam besteiras. Por isso, o Papai-do-Céu resolveu que tudo tinha que acabar e só o Noé e os animaizinhos poderiam se salvar. Hoje em dia, tem muita gente má sim, que faz muita maldade, mas a maioria são boas pessoas. Muitos homens curam as doenças, tocam músicas, escrevem histórias bacanas, fazem filmes, levam comida para os pobres, brinquedos para os orfanatos, ajudam outros animais...
– Homens e mulheres?
– Sim, tanto homens quanto mulheres. Os homens constroem cidades bonitas, estátuas, fazem desenhos animados... você conhece as princesas da Disney?
– Tem a Rapunzel, a Ariel, a Fiona, a Branca de Neve.
– Pois é, sabia que quem fez a Disney foi um homem chamado Walt Disney?
– Disney é um homem?
– Era sim e ele sempre se preocupou com as crianças, por isso fez esses desenhos que você vê todo dia. Sabe quem inventou o sorvete?
– Quem?
– Um italiano chamado Bernardo Buontalenti, que trouxe da China e preparou uma receita que todo mundo gosta até hoje.
– Nossa, como é que você sabe disso?
– Porque muitos homens escreveram livros para que todo mundo soubesse.
Izabel fica mais animada. Eu sento ao seu lado e começo a reerguer as torres de areia com ela. Um dos seus irmãos passa correndo por cima da gente e destrói uma das torres. Izabel fica nervosa e começa a gritar com o irmão, que mostra a língua e corre para o balanço. Eu pego um monte de areia na mão e começo a encher o copinho com areia.
– Vem, Belzinha, não fica chateada, é fácil a gente fazer outra torre. – mais uma torre é erguida.
– O Carlinho é um chato, sempre quebra tudo.
– Ah, seu irmão é só um desajeitado, quando crescer aposto que será um grande homem que vai ajudar muita gente.
– Ele não sabe nem amarrar os cadarços.
– É assim mesmo. Todo mundo tem que aprender um dia.
– Eu sei, vô, aqui, ó. – um laço de tênis é uma conquista inestimável.
As crianças tem uma fé impressionante, que lhes dá um poder de reação incrível. Quem me dera o mundo adulto pudesse reaprender com o olhar de uma criança.