A PERVERSIDADE DO CANGACEIRO GATO E A CABEÇA DO DOIDINHO DECEPADA NO BATENTE

A PERVERSIDADE DO CANGACEIRO GATO E A CABEÇA DO DOIDINHO DECEPADA NO BATENTE

*Rangel Alves da Costa

O batente era outro, pois de madeira, mas o local continua com a mesma feição daqueles terríveis idos de 1932. Ao passar dos anos, aquela terrível marca logo à entrada da casa principal da Fazenda São Clemente (então propriedade do afamado João Maria de Carvalho da Serra Negra, e hoje reconhecida como terra quilombola e parte do Quilombo Serra da Guia, em Poço Redondo, sertão sergipano), continua dolorosa demais na memória sertaneja.

Na São Clemente o testemunho sangrento do desfecho de um dos episódios mais covardes e cruéis da história do cangaceiro, e tendo como vil e principal protagonista o cangaceiro Gato. Nascido na região do Raso da Catarina, na Bahia, de descendência indígena (da tribo pankararé), o futuro cangaceiro foi batizado com o nome de Santílio Barros. No cangaço teve Inacinha como companheira. Nos anais do cangaço, ainda hoje é tido como um dos mais violentos e sedentos de sangue. E isto será demonstrado na triste saga ora relatada.

Conforme assinalado, o batente de madeira foi trocado por um mais baixo de cimento, mas a barbaridade cangaceira não pôde ser removida. Segundo a moradora atual, o batente foi mudado e a madeira guardada por alguém que deveria ter conhecimento de sua importância história. Ainda não sabe quem, contudo. Mas os fatos que redundaram em tragédia de inimagináveis proporções assim aconteceram:

Depois de se afastar das terras baianas e adentrar em Sergipe, Lampião e seu bando desmontam dos animais e o chefe manda que as selas e os arreios sejam escondidos para despistar de possível incursão de volantes na região. Enterrados debaixo de folhagens tais apetrechos sertanejos, eis que um rapazinho chamado Temístocles, morador das redondezas (na Fazenda Couro, do outro lado do riacho que divide Sergipe e Bahia), conhecedor de cada passo e de cada segredo daquela mataria, estranhou quando avistou aquela suspeita arrumação de folhagens entremeadas de terra.

O passo seguinte foi querer saber o que ali estava enterrado, e então encontrou os pertences cangaceiros. Não só encontrou como foi logo dar conhecimento a seu genitor do ocorrido. Seu pai, sem saber o que fazer, procurou ajuda perante a vizinhança, até que um último aconselhamento prevaleceu: o rapaz deveria desenterrar os objetos e imediatamente levá-los até a presença do delegado de Serra Negra, na Bahia.

Entretanto, Totonho, um daqueles que haviam dito que o melhor a ser feito seria levar os objetos até a delegacia, depois acabou contanto tudo a Lampião. Quando o Capitão, já furioso, campeia a região em busca de informações sobre o paradeiro dos apetrechos, então fica sabendo que Temístocles e outro amigo os desenterraram e foram entregar ao delegado João Batista de Carvalho, que, aliás, era irmão do Coronel João Maria de Carvalho e do Comandante de Volante Liberato de Carvalho.

Foi quando Lampião virou na gota serena, no raio da silibrina. Enfurecido, soltando fogo pelas ventas, no instante seguinte já estava ordenando o início de uma das maiores chacinas de inocentes da história sertaneja. O cangaceiro Gato foi o escolhido para comandar a sangria. Seus companheiros de atrocidades foram Azulão, Medalha, Cajueiro e Suspeita. Com as ordens recebidas, foram cortando vereda e dizimando vidas.

Passam na Fazenda Monte Azul e torturam uma família inteira, levando seu proprietário como prisioneiro amarrado a um animal. Chegam à Fazenda Santo Antônio e, como não encontram moradores, então matam animais e destroem o que podem. Despontam na Fazenda Lagoa do Capim, recolhem dinheiro e levam também prisioneiros o dono da propriedade e seu filho. Adiante, decidem matar o primeiro prisioneiro que, exaurido pelo sofrimento, já implorava para ser logo morto. No mesmo instante matam também o menino a tiro.

Os algozes seguem caminho levando prisioneiro o pai do garoto assassinado e chegam na Fazenda Pelada, já levando mais um prisioneiro: Zé Bonitinho, um demente encontrado na estrada. Na Pelada, todos da família são logo feitos prisioneiros. Clemente, o patriarca, foi o primeiro a ser morto. Em seguida, seu filho Doroteu é varado de balas. Aos dois mortos, juntou-se também Alfredo, o pai do garoto assassinado. Mas a sede de sangue de Gato e seus bestiais companheiros continua.

Saem da Pelada em direção à Fazenda São Clemente. Com eles levam Zé Bonitinho e um filho do assassinado Clemente. Não encontram ninguém na sede da fazenda, pois todos haviam fugido. Desapontado e querendo mais sangue, então Gato decide que a hora do doidinho Zé Bonitinho havia chegado. Manda o demente deitar e colocar a cabeça no batente na porta e avança com o facão. Golpe certeiro, sangue espargindo por todo lugar. E, por último, o filho de Clemente recebeu sua sentença de morte.

João de Clemente foi a sétima vítima daquele percurso onde a sanha cangaceiro mostrou o seu lado mais perverso e cruel.

Escritor

blograngel-sertao.blogspot.com