UM OLHAR

Acredito na Internet como caminho ao aprendizado, à descoberta, ao ressuscitar milagroso das relações humanas e ao lazer sadio, em face da realidade adversa e complicada. Penso na vida pré-rede, pré-celular, pré-videocassete ou DVD e creio que agora está melhor. Não muito melhor, só melhor. Não dá para ficar parado no tempo, criticando a existência virtual e a alienação que frequentemente provoca por conta de exageros. Perdeu-se um tanto de convívio familiar e social, mas nada que não se supra com determinação, interesse, iniciativa e um mínimo de disciplina. A comunicação à distância aumentou barbaramente; talvez tenha diminuído dentro dos lares: é o preço do avanço tecnológico, da competição, da insegurança, crises e da era das multidões. É algo inexorável, que nos desenha um futuro imprevisível e desafiador. Nem estou a cogitar de pandemia, guerras ou quaisquer conflitos bélicos, que redesenham relações e a própria vida.

Sou de um tempo em que a namorada ia veranear no litoral, o rapaz ficava trabalhando na cidade e, em alguns casos, encontravam-se ao final das férias ou depois de 15, 20 dias, porque não eram todos que podiam desfrutar de casa de veraneio ou folguedos à beira-mar. As estradas eram péssimas e as distâncias enormes. O intercâmbio romântico dava-se por carta manuscrita, com longas páginas de saudade derramada. Tempos de bolero, rock balada e poesia, mas também de ié-ié-ié, grandes aventuras, enfim, de um mundo intelectual envolvente e múltiplo.

Sou da idade da carta, do telegrama, eventualmente do fonograma, serenatas e dos versos românticos que curtiam a fossa e a separação. Tempos criativos, mas trabalhosos, às vezes sofridos. Tempos de certa lentidão, embora não fosse mais a era das diligências em que viveram nossos pais.

"Par contre", as noites frias e chuvosas de inverno ganharam o esplendor de outra dimensão com o plano virtual para todas as idades. Tudo mais cômodo, ao alcance universal, ainda que, talvez, menos poético - mas não dá para morrer de saudosismo. Passou a era das serestas e dos grandes bailes da Reitoria.

Infelizmente, não são muitos os que cultivam realmente a poesia. Mas também há lirismo na modernidade, com outra roupagem. Os espaços estreitaram-se fisicamente e multiplicaram-se as oportunidades de quem ousa um pouco mais, num universo sem limite. A gente precisa se adaptar, evoluir, com cautela, evidentemente. Ademais, há que se reconhecer que a Internet foi a salvação dos tímidos, dos preguiçosos e dos deslocados nas dobras do tempo. Mas foi e continua a ser um caminho natural para o encontro, naquela mesma linha versejada por Vinícius de Moraes.

Vejam: há VINTE ANOS, no dia 18 de outubro de 2003, dois dias após o niver da minha filhota e em noite chuvosa e banal, andarilhava eu por “chats” de conversação, até desembocar no Portal do Terra. Era a grande pedida para os navegantes, que administravam riscos e arrostavam preconceitos. Preciso testemunhar que já havia conhecido boas amigas assim, mulheres bacanas, jamais enfrentei problema. Sempre curti o desafio das mínimas descobertas no território literário, ainda que digital: a interpretação da palavra, do subtexto, das entrelinhas. Pois bem, lá, deparei com um nickname atraente: “Raíssa33”. Eu era, então, “Um Olhar”: tinha 56 anos, mas achava bonito dizer 55 - bonito e mais "palatável".

Após apresentações e o torneio padrão entre masculino e feminino, deslizamos para o “reservado” do chat, que é onde rolava a conversa privada; depois de horas de papo virtual agradável e promissor, um telefonema na madrugada e – surpresa! – “Raíssa33” morava a oitocentos metros de minha casa. Descobrimos muitas, muitas afinidades, mas o vis-à-vis foi decisivo. Marcamos encontro. Fosse fora do meu padrão, restaurante B; atraente, restaurante A. Era como eu me defendia, com certa elegância e consideração.

A partir do restaurante A, a relação fluiu com naturalidade e bem: amor à primeira teclada, disse um amigo. Nossa união estável foi festivamente celebrada em 03 de agosto de 2008, tudo sem muita pressa.

A música de fundo deste enredo poderia ser "Miss Sarajevo" ou até um dos "Noturnos" de Choppin; o filme, "Les Uns et les Autres", do Claude Lelouch, que, de tão admirável, vale pra tudo. Mas serviria também um rock balada ou um tango argentino.