Memórias do Covid-19, capítulo 2:
 
 
Completo hoje, 14 de agosto, CINCO MESES de confinamento. Sozinha em casa, só com meus cachorros e, uma vez por semana, a faxineira. No supermercado, drogaria, etc,  só digo “débito” e “obrigada”, por detrás da máscara e do visor cirúrgico. Acho que estou desaprendendo a falar.
 
Os vizinhos já não gostavam da minha cara, então, além dos “bom dia” e “tenha um bom fim de semana”, não converso com ninguém. Antes falava com os vizinhos ao lado, até que, lá por abril, a criançada do condomínio apresentou (cada uma na sua sacada, mas em perfeita harmonia) uma música religiosa, e meu vizinho resolveu dar uma de imbecil.
 
Vejam a figura: 30 e poucos anos, morando com a mamãe, barba e bigodes desgrenhados, longos cachos cuidadosamente descabelados, jeans de marca artisticamente rasgados e camiseta do Corinthians – daquelas de 90 dólares. E tênis Nike Zoom, é claro. Bom, you get the picture.
 
Continuando, lá pelo meio da linda apresentação das crianças, meu vizinho decidiu soprar uma daquelas cornetas barulhentas e gritar várias vezes, a plenos pulmões: “Fora Bolsonaro!” O canto das crianças foi ficando inseguro, e elas terminaram se calando. Claro que a boca grande aqui reclamou para a segurança do condomínio. Na noite seguinte, durante a apresentação das crianças, dois seguranças se postaram bem à frente da sacada do não-tão-jovem membro da intelligentsia brasileira.
 
No outro dia, quando me sentei na sacada para ler, ouvi a mamãe do projeto humano sussurrar: “Fala baixo, que a bruxa tá na sacada.”
 
Daí fiquei pensando... Coitados, também estão confinados – mãe, filho, filha e dois netos que costumavam ser o terror do condomínio... Por sinal, foram os netos que me apelidaram de bruxa – provavelmente porque me visto de preto e uso chapéus.
 
All in all, prefiro conversar com meus cachorros.
 
 

 
Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 14/08/2020
Reeditado em 14/08/2020
Código do texto: T7034879
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